Capítulo 9 – Kamasutra em Shuffle
A paixão é uma coisa maravilhosa. Transmite uma inigualável sensação de euforia e revela as pessoas como elas são. Faz subir a adrenalina e a vida flutua como um sonho, nada do que sempre foi existe mais, toda a realidade se altera para criar uma nova, diferente, repleta de mistério, o momento seguinte é uma incógnita, a reacção do outro uma surpresa, a nossa uma revelação, tudo é deixado ao acaso, mas ao mesmo tempo não é, as deixas são guiadas pelo sentidos, inspirando-se no que se está a viver, no que se está a ser, e no que se quer prolongar, uma imagem de excepcional prazer e confusão, a irrealidade marca presença em todo o processo, dar é receber, mas até que ponto só a seguir se sabe, quando se deu e recebeu, o segredo é deixar-se levar, conduzir, fluir, permitir que a essência animal se solte na corrente, livre de preconceitos e inculcamentos, espírito nu, imprevisível e selvagem, que se deixará guiar pelo instinto, saberá o que fazer, ainda que o eu racional se feche na carapaça, incapaz de compreender e parar os fluxos de alto teor de alcoolémia, que disparam pelas veias e irrigam todos os átomos pulsantes de vida, controlando as rédeas que o seu dono, fechado na carruagem de cortinas fechadas, prefere ignorar, não sabe explicar, nem como começou, alertado, talvez, quando o seu centro de gravidade se pôs a girar, a girar, a girar…
A paixão. Contabiliza-se um beijo, um toque, uma carícia mas, na verdade, já antes havia uma intenção, uma ideia, uma antecipação, um jogo de probabilidades em relação a uma parceira, uma potencial companheira, quem sabe uma amiga e, subitamente, um olhar atraiçoa o pensamento e, nesse brilho, espelham-se propósitos e despoleta-se a acção. Só então virá o beijo, se com um beijo se julgou começar. Talvez seja uma mão que se aproxima da outra, do outro, e passeie os dedos em reconhecimento, correndo-lhe as unhas pela pele, pela arrepiante linha da vida, antes de ser surpreendido, capturado pela planta carnívora dos dedos dela, que se fecham nos seus, antes de entrelaçarem-se e apertarem-se, gosto de ti. Não é para sempre, não sei porque foi, não sei como foi, mas está a acontecer, é real, é agora. Talvez o beijo surja só então, não há procedimento escrito, regras a seguir, são os pescoços que estreitam a distância, lentamente, ainda se está a tempo de desistir, mudar de rumo, fazerem-se de desentendidos, desviarem a vista, sorrirem com embaraço, falarem do tempo. O primeiro beijo ataca a face, precavendo más interpretações, a derme é suave, a bochecha macia, mas o essencial é que não se escusou ao contacto, e o segundo, esse sim, buscar-lhe-á a boca, quão diferente será da nossa, com que ânsia no-la devorará, satisfazer-se-á com ela, satisfazer-nos-á com a sua. É sempre uma incógnita até ser tarde demais para parar, porque o ser pensante que um dia fomos fugiu para outras paragens, despediu-se e abalou, talvez observe de longe, do alto, filme, para futura referência, levar-me-á ela ao altar ou só ao orgasmo, mas nem isto se imagina, quando o cortinado desce o cinismo fica às escuras, esconde-se, perde-se, ausenta-se. Passa-se para manual, piloto automático desligado, vai ser uma viagem sinuosa, mas o prazer não é para ficar por mãos alheias, é para ser perfeito, extremoso, que nada se diga ou faça que retraia, que rompa a empatia que nos liga ou para que, mais importante do que isso, queira recordá-lo ao acordar.
O toque tem a suavidade de uma pena, para que a erice e estremeça, arrepie por toda a coluna vertebral, até se espalhar pelos ombros e explodir, como fogo de artifício, pelos filamentos do cabelo, e toda ela será atendida e cuidada, para que nem um milímetro deixe de ser desperto do torpor em que caiu, derreteu, para que se abra a novos encantos, estes são eles, que bons que são, melhor não é preciso, ou é impossível, mas vamos tentar.
Procura-se ir mais além, criar a ilusão do divino, ou do divinal, não são propriamente a mesma coisa, o diabo é quem espreita os deleites, agita a palhinha da bebida exótica, aquece o quarto e enche o sobranceiro coração vermelho, a sua cor favorita, a nossa também, nenhuma outra adequada para um momento despertado no céu mas temperado no inferno, um cocktail de aromas ampliados, uma técnica intemporal que julgamos criar de raiz, à experiência no vazio total, empirismo como a mãe das ciências supremas, mas muito gentil e cautelosamente, mesmo que saltando de cabeça uma aura protege-nos, impede a dissonância, o atrevimento terá de ser consensual, astúcia e habilidade requisitos incontornáveis para um currículo de sucesso, a apresentar com contenção, devagar, a tacada precisa no instante exacto, a detonação suspirada, o estertor, o rouquejo do sublime esvaziar de tudo até nos dissolvermos no ar, tornados um na mais completa paz de absoluto.
A paixão. Ah, a paixão…