Capítulo 3 – Sem Prego Nem Estopa
A rasgar pelo seu inconsciente como um eco distante, a sereia das hélices de um helicóptero veio resgatá-lo ao oceano de piche onde se descobria mas, apesar de esbracejar na direcção da bruxuleante luminosidade que distinguia no topo dessa densa massa negra, não saía do sítio, debatendo-se com tentáculos vigorosos que lhe enredavam os membros e tolhiam o progresso. Lutou por ar, em desespero, mas o que engoliu foi um líquido espesso, que lhe queimou a boca e avançou pela garganta, inflamando os pulmões e calcinando o coração. Atirou o braço para a frente, furiosamente, querendo assim rasgar a distância até à superfície e ao veículo que pairava sobre o seu desespero, e nessa ânsia viu algo que vinha ao seu encontro, lentamente e por vagas, de onde afinal partia o som que associara a um helicóptero. Amigo ou inimigo, perguntou-se, e procurou uma arma no corpo, qualquer coisa com gume que lhe permitisse soltar-se do que quer que o mantinha cativo naquele negro lamaçal, mas os seus dedos não encontraram o conforto de nada que pudesse ajudá-lo a enfrentar uma ameaça. Quando o objecto investiu finalmente sobre ele, impeliu as mãos para diante, não para evitá-lo, mas para agarrá-lo, antes que as mandíbulas deste se abrissem em duas frentes de devoradora dentição, e teve o discernimento suficiente para perceber que afinal era um telefone e levá-lo ao ouvido.
– Não era sangue – a voz do Inspector-chefe, abafada, como se surgisse do fundo de um túnel. Ofegante, Ismael levou a mão livre ao cabelo pastoso e o pulso à vista, onde ponteiros se dispuseram de modo a transmitir-lhe a noção de que não dormira sequer duas horas. E a informação que vinha por ondas electromagnéticas não fazia o menor sentido. – Era tinta. Azarito. E já tivemos notícias da penitenciária, o teu pequeno ainda lá está. Teremos de explorar outras frentes.
– O quê? – Ismael endireitou-se no sofá, perplexo. A realidade começava a voltar a si, as portas encavalitavam-se nas dobradiças, os quadros endireitavam-se nos pregos, a jarra ia parar à estante e as flores de plástico aprumavam-se como se recebessem algum benefício da luz do sol que entrava pela janela da sala. Subitamente ciente de continuar dentro da roupa da véspera e de esta se ter transformado numa sauna, constatou que também lhe doíam as costas.
– Vou repetir: o graffiti no viaduto é spray de pintar automóveis e o Mistral continua atrás das grades.
Ismael baloiçou freneticamente a cabeça e esfregou os olhos. Não podia acreditar. A figura demoníaca no topo do viaduto, de gabardina ao vento, gargalhava agora uma daquelas onomatopeias demoníacas que só se enquadram nas bandas desenhadas. A apreensão que sentira na véspera voltava a colocar-lhe os dedos frios à volta do pescoço. Desde que vira o nome escrito em sangue... que afinal não era sangue...
– Não pode ser, Chefe – Ismael, desorientado, levantou-se e dirigiu-se à cozinha. Precisava de um café: – Quem mais é que ia pintar aquilo ali? Foi para mim, para eu o relacionar ao crime.
Olhar na direcção do quarto de dormir foi reflexo, ainda que aquele ângulo não fosse o mais eficaz. Os lençóis da cama tinham sido levados para o laboratório, mas o colchão ensopado ainda se encontrava encavalitado no topo do leito. Sacudiu a cabeça e piscou os olhos, para se concentrar no telefonema.
– Conheces a expressão “não há coincidências”? É preciso ter provas para usá-la.
– Uma análise à caligrafia, então, comparar com os outros graffitis, os mais antigos que estão no processo, de certeza que…
– Parece haver aqui uma força anti-gravitacional a querer que eu me repita – silvou o Inspector-chefe. – Durante o teu sono reparador, não estivemos de mãos atadas. As impressões digitais ainda não foram identificadas, mas já temos o resultado da autópsia preliminar. A morte foi provocada por um corte na garganta e não há indícios de violação. Enviámos fotografias do cadáver para todo o país e a GNR de não sei de onde, no Alentejo, relacionou-o com um caso de pessoa desaparecida. Destaquei o Simões e o Pedralva, já estão a caminho. Ainda estou para ver o preço em portagens que essa brincadeira vai custar…
– Chefe, a investigação é minha…
– Estava a demorar a ouvir essa. Já conheces a cantiga. Estás demasiado envolvido, sem objectividade e blá blá. Tens dois contras: para além de teres embicado no suspeito errado, tu próprio és, tecnicamente, suspeito. A hora da morte iliba-te, em princípio, porque estavas com a tua namorada num restaurante em que se lembram de ti, mas é incontornável que o corpo foi encontrado na tua propriedade, por razões ainda injustificadas. Claro que confio em ti e faço figas até à última página, mas por enquanto, deixa os profissionais fazerem o seu trabalho. Aliás, não posso deixar mais claro do que isto: não te quero envolvido até esse pormenor ficar claro. Deus queira que realmente não a conheças, do que este departamento menos precisa é de um escândalo. Já dizia o Steven Wright: "A curiosidade matou o gato, mas durante algum tempo desconfiaram de mim".
Ismael quis falar, mas não soube o que dizer. Era preciso associar o graffiti ao cadáver para colocar Mistral na imagem e ninguém queria tomar esse passo, porque o graffiti não era em sangue. Não ia conseguir dar a volta ao Inspector-chefe sem provas, nem valia a pena tentar. Teria de reuni-las sozinho.
– O Mistral está em que prisão?
– Que nem te passe pela cabeça – alertou o Inspector-chefe. – Tu hoje ficas em casa, tranca a porta e fecha os estores, toma um comprimido para dormir e deixa-te estar quietinho. Antes que o dia acabe, já devemos ter impressões digitais, registos dentários e a Alentejo Connection deslindada. Se quiseres, mando-te a fotografia da vítima, para veres se te lembras dela. Podes tê-la visto no café, numa loja, tê-la ajudado a atravessar a rua ou metido conversa com ela por ter um cão engraçado. Tu e o Lopes estão com que caso? Não interessa, vou avisá-lo de que hoje está por conta dele, não morre por isso. Amanhã é um novo dia.