Capítulo 11 – Rescaldo
Em duas passadas, os três homens materializaram-se ao fundo do corredor e percorreram-no sem uma palavra, os seus semblantes carregados o suficiente para silenciarem a conversa do par de agentes da PSP que guardava a porta. Caminhavam em pirâmide, um à frente e dois atrás, mais pela estreiteza do espaço do que por estratégia, ainda que fosse evidente, na formação presente, qual deles tomaria sempre a dianteira.
– Para estar aqui a chover tanto – cumprimentou um dos agentes fardados, engasgando um espirro e esfregando as mãos sem avareza –, de certeza que faz falta noutro lado.
– A conversa anterior pareceu-me mais interessante – contrapôs o Inspector-chefe, ausente de sorriso, mas também de recriminação. – Sobre a diferença entre a mulher e a prostituta não ser o pagamento.
– Sim, senhor – confirmou o agente, enquanto dava passagem à Judiciária. – Ninguém visita uma prostituta pelo prazer de pagar.
Assim que transpôs o tapete de boas vindas, o cérebro do Inspector-chefe organizou a planta do apartamento. Um corredor para a esquerda conduzia à casa de banho e à cozinha, a porta em frente dava acesso à sala, visível através do jogo de vidros encaixilhados na madeira e à da direita, sólida, só lhe restava ser a do quarto. Como visse Ismael ao fundo, avançou para a sala.
– Meu rapaz, como te estás a aguentar?
Apresentando traços clássicos da linguagem corporal de um animal enjaulado, Ismael desviou a vista da janela e esticou a mão aos recém-chegados, que lhe imitaram o gesto. Ao seu olhar inquisitivo, o Inspector-chefe abanou a cabeça.
– Nem sei que diga. Ponto de situação: a Balística apurou que o teu sapato foi morto por uma Nosler de calibre .308, de 150 grãos, usada normalmente por armamento pesado do exército, metralhadoras 7,62. Aparentemente, também existe de 165 grãos, mas a de 150 é mais precisa. Para ainda aqui estares, a culpa deve ter sido da chuva ou mexeste-te no último segundo. Já tiraste alguma conclusão?
– Encontraram a arma? – perguntou Ismael.
O Inspector-chefe fez uma careta e aproximou-se da janela. O Inspector Pedralva tomou a palavra:
– O atirador deve tê-la levado consigo. Provavelmente, saiu do prédio logo a seguir ao disparo. Não viste ninguém pela janela?
Ismael abanou a cabeça, perplexo com a sugestão:
– Hás-de convir que, depois de ter sobrevivido ao primeiro tiro, não tenha querido facilitar-lhe o trabalho.
– Em regra, um atirador profissional aproveita-se do elemento surpresa, resguardando-se imediatamente de maneira a desmontar a arma, recolher indícios e sair da cena o mais depressa possível – argumentou Pedralva.
– E como é que sabes que foi um profissional?
– É, pelo menos, experiente – considerou o Inspector Simões. – Coitado do casal …– Ao carregar de sobrancelha de Ismael, explicou: – Depois do LPC ter calculado o ângulo do disparo e de identificarmos o ponto de origem, arrombámos o apartamento do outro lado da rua, dois andares acima deste, e encontrámos os moradores, um casal de idade, manietados. O marido foi amarrado a uma cadeira com adesivo de condutas e a esposa desmaiou logo que abriu a porta. Pelas palavras dele (a senhora ainda estava em choque, vai prestar depoimento esta tarde), tocaram à campainha, a senhora disse que era uma voz de criança e não se via nada pelo olho mágico. Assim que abriu a porta, terá desmaiado, não sabemos ainda se por pânico ou golpe. O marido veio ver o que se passava e foi rapidamente dominado por um indivíduo vestido de preto e balaclava táctica, que o conduziu para o quarto, amarrou e amordaçou. A esposa foi deitada na cama e a porta fechada. Não viu mais nada e não ouviu tiros, pelo que, ou é surdo, ou a arma tinha silenciador.
– Eu também não ouvi – confirmou Ismael, pensativo.
– O LPC ainda está a inspeccionar o apartamento, mas não é optimista. Luvas e balaclava querem dizer que não há impressões digitais nem cabelos. Quanto ao disparo, deve ter sido feito com a janela semiaberta, foi detectada uma queimadura no parapeito que pode ter sido do coice da arma. De resto, a única descrição é de um branco de estatura média. Não temos cor dos olhos nem sotaque, porque foi rápido e não falou. Quanto à altura, é mais alto do que o dono da casa, o que não ajuda muito porque tem corcunda e pouco mais de um metro e sessenta. Depois de ser trancado, estava mais preocupado com a segurança da esposa e em não ter um AVC.
– Conclusões? – o Inspector-chefe, entretanto, tinha-se sentado no sofá que enfrentava a televisão desligada e, com um queixume, traçado a perna. Como ninguém sabia quem tinha tirado o palito mais curto, Ismael tomou a iniciativa, pensando em voz alta:
– Eu cheguei aqui ao final da tarde de ontem e não voltámos a sair. Não há razão nenhuma para o atirador saber que este seria o meu destino, pelo que só posso supor que me tenha seguido. Isso fez com que soubesse o prédio onde eu tinha entrado, mas não o andar. Deve ter ficado na rua, à espera, a estudar os dois prédios, a ver quem entrava e saía. Talvez tenha visto entrar o casal de idade e decidido mudar de poiso, para ter melhor vista, e ficado a noite inteira à janela.
– E, nessa nota, interrompemos o recreio – o Inspector-chefe consultou o relógio e levantou-se, libertando novo queixume. – Caros Inspectores, sugiro um porta-a-porta imediato, para averiguarem junto da vizinhança se alguém reparou no suspeito, quer estacionado, encostado a uma soleira ou à janela. Há sempre um morador que vem fumar ou passear o cão, ver as estrelas ou chega do teatro ou de um bar fora de horas. Já houve aparato policial suficiente para ninguém vos confundir com testemunhas de Jeová e perguntar não ofende.
Ismael recordou ter trazido Élia a casa na noite anterior. Tê-los-ia Mistral seguido então? Nesse caso, contaria com vinte e quatro horas para estudar o prédio em frente e marcado o melhor ponto para um atentado. Não saberia que ele vinha ter com ela esta noite, mas arquivara os dados para memória futura. Afinal, se eram namorados, era fatal que, mais dia, menos dia, ali fosse pernoitar. Como Magnum não fosse adepto da teoria do envolvimento de Mistral, preferiu não se pronunciar, mas esse pensamento não o abandonou. Nem aquele que questionava se Élia ainda quereria namorar com ele.
Os três Inspectores inclinaram-se para a saída mas, com um rápido gesto de inclinação da cabeça, que poderia ser confundido com um abanar da cabeleira se o Inspector-chefe ainda a tivesse, este reteve a intenção de Ismael.
– Vai-te lá despedir da tua moça com calma e deixa o inquérito para os profissionais. Vens ter connosco à sede pelas 11 horas, para um ponto da situação. Ainda não sei o que fazer contigo mas, se o caso ciranda à tua volta, teremos de pensar nalguma coisa. Aproveita para ir a casa tomar banho e mudar de roupa.
Uma vez sozinho no átrio, Ismael inspirou fundo e voltou a atenção para a porta do quarto.