Capítulo 8 – A Tempo
Quando o carro desfez a esquina com duas rodas a acenarem no ar, os neurónios de Ismael chocaram contra o lado do crânio que ficou abaixo do nível da água. Tentando reagrupar-se, apesar dos seus terminais nervosos terem entrado em curto-circuito e provocarem, em simultâneo, crispação muscular, sudação axilar e desorientação sináptica, insistiu na cumplicidade com o acelerador, pela rua calcetada que lhe dificultava a navegação.
O olhar vigilante transformou a paisagem urbana numa grelha e percorreu os espaços destinados a estacionamento, procurando divisar um lugar vago ou o piscar prenunciador de faróis traseiros, mas não tinha a sorte do seu lado. A velocidade estava prestes a sofrer, igualmente, um inconveniente, obrigando-o a reduzir o andamento. Demasiados condutores obedientes ao poder hipnótico do semáforo, que se erguia sobre o cruzamento, limitavam-lhe a mobilidade e os braços e pernas que o Honda Jazz tinha, para passar por cima do trânsito, só existiam na sua imaginação.
Embalou a inquietude emocional com a marcação de um ritmo convulso, da ponta dos dedos, no volante e aproveitou que o entardecer lançava o seu manto de sombra sobre a rua e as janelas começavam a iluminar-se, para estudar o prédio de Élia, a destacar-se entre dois sem varandas, por tê-las.
Qualquer aventureiro menos aderente, nas extremidades dos membros, do que o Homem-Aranha teria dificuldades em descer a fachada, vindo do telhado, fosse pelo tubo da caleira ou varanda a varanda, e muito menos sem ser visto. Subir, a partir do passeio, para a primeira varanda, e daí até à terceira, não seria, igualmente fácil, ainda que uma caixa de electricidade no separador entre edifícios tivesse superfície suficiente para um joelho. Interrogou-se sobre o aspecto das traseiras. Pátio, escadas de incêndio, janelas abertas, estendais, mais varandas, não havia forma de saber, nem tempo para indagar.
O semáforo transferiu o fardo da espera aos veículos em posição perpendicular e os canos de escape à sua frente começaram a produzir fumaça rejubilante. Alguns carros desperdiçavam já os faróis médios, mas ainda não era obrigatório assinalar-se sequer com os mínimos, tendo em conta a visibilidade. Isso significava também que, se parasse o seu e atravessasse a rua, seria perceptível por qualquer ângulo que tomasse. Se estivessem a controlar os acessos.
Independentemente da expressão fila indiana ter sido cunhada a pensar no modo furtivo com que os índios americanos avançavam sobre o inimigo, os indianos nunca se tinham descartado do equívoco e os portugueses pareciam reivindicá-lo, numa lentidão para a qual o semáforo, como qualquer outro instrumento de controlo de tráfego minimamente coerente para com horários programados, perdeu a boa vontade e o seu descontentamento manifestou-se da mesma forma que o de um árbitro, erguendo bem alto o que de mais vermelho envergava.
A paciência de Ismael, assim como a claridade do dia, ia-se escoando rapidamente e não pensou duas vezes em galgar o passeio assim que, recuperada a permissão electrónica de avançar, se viu a coberto da esquina. Em cima do tablier, expôs um cartão plastificado com a insígnia da Polícia Judiciária, onde podia ler-se o seu nome e contacto telefónico, e trancou o carro. A temperatura exterior baixara entretanto, mas o desassossego mantinha-lhe o barómetro sossegado. Atravessou a rua e manteve-se próximo da parede, estugando o passo até ao prédio de Élia, de cabeça baixa e olhar adiante, para não atrair atenção. Outras viaturas negociavam agora com o sinal luminoso a sua passagem, no mesmo alinhamento de formigas que momentos antes ficara sem nacionais a quem atribuir, porque entre índios e indianos ainda ia uma boa distância e ninguém sabia percorrê-la sem uma enciclopédia, a preguiça impedindo de a folhear directamente nos telemóveis, cujo uso o Código da Estrada proibia e o Big Brother supervisionava.
A coberto da pala de cimento existente sobre a entrada, extraiu do porta-chaves as duas pinças que serviriam de gazua, enquanto percorria as folhas do manual de intrusão que arquivara algures na memória, mas devolveu-as à algibeira e empurrou a porta. Aparentemente, o trinco não funcionava, inviabilizando assim a primeira linha de defesa dos moradores.
Parou junto às caixas de correio e espreitou pela ranhura. Vazia. Tanto podia significar que Élia o recolhera à chegada, ou que, simplesmente, não havia correio. Utilizar o elevador estava fora de questão, o ruído ser-lhe-ia inconveniente. Deixou a vista habituar-se à fraca claridade do átrio, antes de iniciar a subida dos três lanços, mas retrocedeu de imediato, para acender o interruptor. Não havia janelas nem clarabóia que iluminassem o espaço, apenas uma escadaria que contornava, em ângulos rectos, o poço do elevador. Como circunstância favorável, a luz das escadas era independente da dos corredores e, portanto, oculta aos olhos mágicos. Inspirou fundo: havia melhor forma de coroar um dia como este do que galgar três andares?
Deixou que a luz das escadas se apagasse, antes de avançar pelo corredor. Nenhuma claridade por baixo da frincha da porta, mas o mesmo podia dizer-se das restantes habitações. Não estava ninguém ou havia resguardos do lado de dentro? Voltou atrás, para acender novamente a luz das escadas.
Um joelho no chão colocou-lhe o olhar ao nível da fechadura. Não parecia ter sido forçada. Alguns arranhões a estragar o polimento que a idade já ajudara a manchar, mas ninguém acerta na ranhura todos os dias, especialmente se trouxer uma mala de tiracolo ou sacos de compras. Encostou a orelha à madeira e deixou-se ficar atento. As luzes apagaram-se, reduzindo-o ao nada. Sem distracção ocular, dedicou-se à audição, mas o eco da sua ansiedade era desconcertante, como se os seus sistemas circulatório e respiratório tivessem desligado os silenciadores e fizessem despique.
Eventualmente, o seu radar filtrou os sons internos e permitiu-lhe concentrar-se nos restantes. Havia alguém dentro do apartamento de Élia. Não eram sons muito nítidos, mas alguém se movimentava num dos compartimentos à esquerda da porta, o que distinguia depois de abafar um som mais intenso. A televisão?
Precisava de determinar a situação de Élia, sem se denunciar. Pegou no telemóvel e premiu o botão de repetição de número. No ecrã, surgiu um cabo de alta tensão a dispersar ondas electromagnéticas. Aguardou, imóvel, que o aviso de recepção de chamada fosse audível através da porta. Nada. Sentiu uma gota de suor descer-lhe pela têmpora. Continuando a chamar, a luz do visor apagou-se. O coração de Ismael bombeava de forma insuportável, ameaçando saltar para fora, despedaçando-lhe as costelas e arrombando a porta contra a qual se aninhava.
Finalmente, um som musical fez-se ouvir no interior do apartamento. Ismael concentrou-se de novo. A pessoa que se movimentava do lado esquerdo da casa atravessou-a até ao lado direito, abrindo uma porta, o que fez com que se ouvisse melhor o som do telemóvel e o da televisão. Passado um momento, o som do telemóvel apagou-se, mas não o da televisão. Ismael consultou o aparelho: chamada rejeitada. Um único conjunto de passos voltou a percorrer o apartamento, passando junto à porta. Também ouviu um queixume.
Ismael pôs-se de pé, lentamente, e retirou o revólver do bolso. Só havia uma pessoa a cirandar pela casa, o que significava que Élia estaria, possivelmente, amarrada na sala, com a televisão por companhia, e outra pessoa se fazia à-vontade com o que não lhe pertencia, ou … não queria pensar na segunda hipótese. Porque haveria Élia de rejeitar as suas chamadas?
O próximo passo exigia tudo o que não tinha. Forças especiais a explodirem pelas janelas do apartamento, fazendo um reconhecimento imediato e a criarem distracção suficiente para que o braço de Ismael, transformado em aríete, arrombasse a porta e salvasse Élia, enquanto os outros transportavam Mistral de volta à prisão.
Tocou à campainha.
Os passos retornaram, vindos da esquerda. Alguém espreitou pelo olho mágico. Ismael manteve-se fora do seu alcance.
– Quem é?
A segunda hipótese começou a afigurar-se mais certa.
– Sou eu, Ismael – disse, enquanto guardava a arma.
Ouviu um suspiro e, após uma pausa, o rodar de uma chave, de uma lingueta e de uma corrente.
Assim que a porta se abriu, percebeu que Élia não estava a ser coagida e que as suas chamadas tinham sido recusadas intencionalmente, mas algo dentro de si foi mais forte do que ele e os seus braços envolveram-na num abraço imenso, erguendo-a e puxando-a para si, prensando a carne dela à sua, e manteve-a suspensa no ar até que a mão dela lhe deu umas palmadinhas no ombro.
– Estás bem – perguntou ele, descolando-os finalmente e pousando-a no chão, a observá-la como se procurasse fracturas.
– Porque é que não havia de estar?
– Não sei, não atendias o telemóvel, fiquei com medo que pudesse ter acontecido alguma coisa... – ainda deitou um olhar ao interior do apartamento, mas já sabia que ninguém ia saltar das sombras para atacá-lo.
– E vinhas salvar-me? – Élia apontou para a mão direita de Ismael, cujos dedos ainda apertavam a coronha do Rhino, que ele julgava ter guardado.
O desconforto da vulnerabilidade fez Ismael dar um passo atrás, enquanto devolvia o revólver ao bolso das calças e passava a mão pelo cabelo empastado. Tentou imaginar o seu aspecto, depois de horas nos arquivos poeirentos da Penitenciária dos Amores, da tourada a quatro rodas no parque de estacionamento e do quanto as suas glândulas sudoríparas teriam segregado desde que se metera a caminho.
– Está certo, devia ter percebido – disse, sem saber o que queria dizer, olhando em redor por uma superfície a que pudesse apoiar-se, sem ser demasiado óbvio.
Élia deu um passo em frente e tocou-lhe num braço.
– Estás a tremer… Ficaste mesmo preocupado.
A sua expressão começou a mudar e Ismael julgou ter entrevisto o início de um sorriso quando ela o abraçou a ele.
– Anda cá. O cavalheirismo tem de ser recompensado.
Como ela não o soltava, Ismael voltou a estreitá-la, lentamente.
– Estás mesmo bem? – perguntou.
– Vá, anda, aperta-me, faz-me sentir segura. Olha que eu não te ia deixar entrar assim tão depressa.
– Na tua casa?
– No meu coração.
Ismael cingiu-a mais, pousando a boca no cocuruto dela e beijando-lhe os cabelos.
– Não sabias atender o telefone? – desabafou, ao fim de uma eternidade.
– Já cá faltava…