Capítulo 13 – Ansiolítico
Ao verificar que os dois comprimidos que acabara de tomar tinham ultrapassado o prazo de validade há mais de dois anos, tomou mais um e esmagou a embalagem entre os dedos. Fechou os olhos, respirou fundo e foi alvejado no rosto. Voltou a abri-los.
Ainda tinha o revólver na mão, empunhado que fora antes mesmo de abrir a porta, agora no trinco, cumprido o rito de passagem, e atrás do cano avançara pelas diversas divisões, consciente de que o lugar onde deveria sentir-se mais seguro fora o primeiro profanado. Na extensão do braço, a arma, tão natural, tão leve, da ordem à acção um impulso sem esforço, execução sumária, a ansiedade era aguardada mas a paranóia dispensava, obrigado, talvez noutra altura.
Concluída a vistoria sem nada a assinalar para além da crescente necessidade de arrumação e de um quarto ainda contaminado pela morte de uma prestes a deixar de ser desconhecida, pousou o Rhino .357 no tampo da cómoda da sala, com cuidado para não arranhar o brilho da madeira, junto ao par de vasos altos que conservava cheios de areia para gatos, não porque tivesse felídeos, mas porque descobrira que era uma ajuda preciosa a eliminar maus cheiros, também não porque os tivesse, mas porque eram inevitáveis. Despiu ali mesmo a camisa, botão a botão, depositando-a nas costas do sofá que o embalou com pesadelos de piche irrespirável na noite anterior àquela em que Élia o encantou com o veludo branco da sua respiração fresca, e descalçou-se. Calças no chão, cuecas por baixo da mesa, uma peúga em cima do abat-jour e encaminhou-se para o quarto de banho, normalidade restaurada, ou quase. Voltou atrás para recuperar a arma.
A banheira, tão perto e tão longe, quando depositou o revólver em cima do lavatório. Hesitou antes de trancar a casa de banho, eventualmente a primeira vez que tal acontecia, a chave até então um mero artifício desinibidor para terceiros, visitantes mais receosos de serem apanhados de rabo no ar, ainda que a utilização do sanitário conforme o manual lhes voltasse as nádegas para a parede, ou para o autoclismo primeiro, a parede depois, de qualquer modo o oposto à porta, e espelhos não havia que frustrassem as intenções mais recatadas, só aquele de ângulo morto para estes afazeres, que toda a gente gosta de se observar enquanto escova os dentes ou faz a barba, não vá cortar-se no meio da espuma ou deixar um dente por raspar, que nesta casa só se usam escovas de nylon duro, ou és homem ou vais comprar a tua.
Quando a água quente o cercou, ainda não tinha sossegado. De ouvidos concentrados nos ruídos normais do lar, atenção redobrada a estalidos e arrastos, mas só ouvindo a pressão da água contra o corpo, o esmalte da banheira e a cerâmica dos azulejos que impermeabilizavam a parede.
Que diferente era esta atitude desconfiada daquela de passinhos controlados pelas ancas com que saíra do apartamento de Élia, tempestade evitada por copo de água bebido, precaução acima de tudo que a água não engorda. Houvera tranquilidade a caminho do elevador e na descida feita a sorrir para o espelho, quem era aquele palerma que lhe devolvia o semblante em moldura oxidada nas pontas, expressão fechada a substituir a anterior assim que se viu assaltado por duas equipas de filmagem quando chegou ao passeio, espantado consigo por não ter antecipado o espectáculo televisivo, tiros vendem e a presença policial reforça, só faltava o ardina se a caixa mágica fosse de papel folheável, dedos sujos de tinta de cada vez que se premia o botão. Ainda pensou em passar por inquilino ignaro, mas uma das repórteres reconheceu-o, pelo que trocou o teatro pelo silêncio, que o carro estava ao fundo da rua e os sapatos mais depressa aí o colocavam se mais depressa lhes desse corda.
Já o sprint ia decidido e o conta-quilómetros de feição quando recordou que já a tinha convidado para sair e não fora incómodo para nenhuma das partes, mas não podia ceder agora o avanço, pois teria de deixar-se entrevistar por ambas emissoras, para um agente da lei não pode haver favoritas, mesmo quando uma das visadas era claramente melhor na cama do que a outra, porque a experimentada tem nota e a outra nem se qualificou. Para fazer um relatório à comunicação social, porém, não se sentia com inclinação nem objectividade e, ademais e principalmente, nem sequer estava em caso próprio e de repreensões já tinha a sua conta.
As equipas de informação audiovisual tinham-no seguido algumas dezenas de metros, a arrastarem fios, câmaras e microfones, mas eventualmente os primeiros esticaram, os terceiros fugiram-lhes das mãos e as segundas foram bem agarradas antes que lhes seguissem o exemplo, que danos e avarias eram imputados a quem as empunhava, ignomínia que comungavam com polícias e militares, mas não compunha fraternidade bastante para enternecê-lo a reconsiderar. Se coisa houve que lamentou, foi aquele circo tê-lo privado do momento antecipado de olhar para cima e acenar a Élia à janela, que de certeza lá estaria, a enrolar os seus negros cabelos de Rapunzel mediterrânica, pronta a lançar-lhos para que invertesse o rumo e retornasse ao lar de amantes interrompidos, tiros e vidros já esquecidos e varridos para debaixo da cama, que do tapete mais dificilmente se aspirariam aquando da limpeza semanal. O que o lembrou de que a substituição da janela pediria alguns telefonemas e orçamentos, com que Élia poderia distrair-se em casa pela manhã, acaso concentrar-se naquele tópico pudesse ser considerado abstrair-se do mesmo.
Chegado ao cruzamento, encontrou o seu Honda Jazz em pedestal plantado, que é como quem diz em cima do passeio, com honras de elevação face aos que circulavam no asfalto rebatido, e de chave na mão imobilizou o dedo sobre o comando sem premi-lo, a luz vermelha a querer acender mas impossibilitada de levantar as cavilhas das portas, talvez o dono quisesse andar mais a pé, ou apenas contemplar a viatura, que já fizera doze anos mas se aguentava como no primeiro dia, sem contar com a substituição da bateria, pneus e filtro de óleo, que o resto aguentava-se como no primeiro dia, apesar de ter ouvido na última inspecção que o assento do condutor precisava de ser reaparafusado e a matrícula já não se lia bem ao longe. Ismael elevou a vista e percorreu os telhados com sobrancelha encordoada, imaginando uma figura de turbante na cabeça e lança-mísseis ao ombro a correr por entre as telhas e os terraços, recortada contra o céu encoberto até se imobilizar no ponto mais estratégico da vertical inclinada, abre, ajusta e dispara, adeus Jazz, rock e pop, e, sem hesitar, dobrou-se num joelho, esticou as pernas e só as mãos o impediram de raspar o queixo no chão, o que veio a acontecer apesar do esforço em contrário, já que, de outro modo, seria incapaz de verificar convenientemente a parte inferior do carro, em busca de equipamento estranho que, rodada a ignição, o fizesse dar um passo tão grande para o homem como o de Neil Armstrong fora para a Humanidade, sem nave espacial, fato espacial ou a sentir-se especial, enquanto se desintegrava por todo o cruzamento.
Assistir ao espectáculo de veículos desmantelados em busca de droga escondida rogava-lhe conhecimentos acima dos do habitual condutor de entra, senta e arranca, pelo que recuou com a convicção de estar a ser alvo de olhares curiosos, mas a salvo do destino do gato proverbial. Limpou as mãos às calças porque o cimento retém a chuva, mas antes molhado do que morto. O comando rejubilou, a luz acendeu-se e as portas foram orgulhosamente destrancadas.
Procurou ainda fios soltos por baixo do tablier, concluindo finalmente que, satisfeito de gasolina, o carro ainda tinha rodagem para oferecer. Entrou e avançou, aproveitando que o sinal fechara para os que entravam no cruzamento e ainda não abrira para os que se cruzavam com esses.
De toalha enrolada à cintura, abandonou a casa de banho com o revólver a servir um papel menos protagonista mas, ainda assim, mais activo do que figurante. Confirmou não ter recebido visitas durante a lavagem, antes de despojar-se da toalha e da arma, rumando ao quarto para prover-se de nova indumentária, que a profissão deixava ao seu critério e ele ao seu bom gosto.
Cingindo-se ao lapso indispensável à recolha e transporte dos tecidos para a actualmente multi-usos sala de estar e lamentando não poder simplesmente rodopiar sobre si próprio até um raio de luz o trajar por osmose, não pôde deixar de interrogar-se se teria havido algum propósito oculto para a intrusão, com o cadáver a funcionar apenas para encobri-lo, manobra de diversão tão gritante que ninguém se lembraria de procurar-lhe segundo sentido. Não parecendo terem sido plantados indícios incriminatórios na vítima ou cercanias, seria possível terem vindo buscar elementos para uma plantação futura? Era óbvio que, se fosse comprometido num segundo crime, nunca se livraria da suspeita de ter mão em ambos. E seria tão simples… um fio de cabelo retirado da escova, peles escamadas recolhidas do interior do pijama, um objecto pessoal de segundo plano, não detectado no inventário preliminar, com que afastara a hipótese de roubo.
Ligou o computador portátil e abriu o histórico de pesquisas. Ter-lhe-iam instalado algum trojan, para monitorizarem o seu trabalho subsequente? Fez correr o antivírus e o malware, conferiu os últimos programas e ficheiros recentemente acedidos. Não encontrou dados conflituantes, recordando-se dos importantes e despromovendo os restantes à sua inconsequência, com as devidas desculpas aos criadores de jogos e os agradecimentos à indústria pornográfica. Mas, talvez fosse conveniente sujeitar a máquina a um especialista, que assegurasse a independência e segurança do sistema operativo. Mistral tivera muito tempo para conceber planos de vingança e, se os de um homem simples envolviam uma oportunidade e uma caçadeira, os de um indivíduo complexo urdiam as oportunidades e silenciavam as carabinas.
Enquanto os botões da camisa iam parar às respectivas varandas, que chamar de casa a algo que não dá abrigo parece excessivo e incorrecto, nomes tão estranhos são dados a coisas que não passam de ausências, pois um corte é um menos e não um mais, e um rápido olhar ao átrio trouxe à ordem do dia outro assunto mais relevante do que aquele com o que o narrador se distraiu, neste caso a fechadura da porta de entrada e a ponderação de que, quiçá, a substituição do canhão não fosse uma prioridade. De facto, quem tinha arrombado uma, arrombava duas, já que a primeira era de qualidade e a segunda ser-lhe-ia inferior, que gastos extemporâneos faziam-se de cinto apertado e calculadora avisada, a somar também o orçamento da janela de Élia, a sobrar para ele sem dúvida alguma, a menos que provasse que um ex-namorado ciumento abandonara o quartel para obrigá-lo a somar aos demais o custo de uma sola.
Até que ponto correria risco de vida e deveria apostar numa segunda arma de fogo? E o que lhe conviria mais, a recente Heizer DoubleTap de titânio, praticamente indetectável quando dissimulada na roupa, mais leve e pequena que o Rhino e que só disparava duas balas antes de se recarregar manualmente com dois cartuchos arquivados no cabo, calibre .45 ACP para não borrar a pintura, versão moderna da galante arma do jogador de cartas de saloon, que este guardava entre dois ases na manga que não dobrava, ou uma Smith & Wesson Backpack Cannon, calibre .460 Magnum, apresentada como arma de apoio para caçadores, capaz de parar um urso ou um javali a curta distância, apenas indicada para profissionais treinados no levantamento de pesos e no coice de cavalos? A calculadora até deitava fumo …
Antes de desligar o computador, consultou a correspondência e, porque não era menos do que ninguém, espreitou o Facebook. Alertado de que tinha 23 comentários e 2 mensagens pendentes, confirmou apenas que nenhuma era de Élia e o cursor movimentou-se para os passos de fecho. Quando o ecrã se apagou, desceu o tampo até o mecanismo de tranca ser activado e colocou o equipamento na mochila. Pegou no smartphone e este vibrou.
Com um olho no Rhino e outro no telesperto, arrastou o ícone da carta para que esta se abrisse e leu o sms:
Apanha os maus. Beijo.
Não foi capaz de evitar um sorriso. Sou invencível, ouviu gritar uma pequena versão de si dentro do cérebro. Não és. Sou, gritou a pequena versão, batendo no peito com ambos punhos. Ismael colocou o clip do coldre no cinto das calças e depositou nele o Rhino. É bom que sejas. E nem precisou de consultar o relógio para saber que estava na hora de sair.