Capítulo 12 – Coimbra
A porta abriu para o interior do quarto, onde duas mulheres vasculhavam o conteúdo das gavetas e inventariavam o enxoval, cujo recheio era organizado na cama, erguendo sobre o edredão uma pequena metrópole, com destaque para as torres de vestuário, a mais elevada das quais a acusar já uma inquietante obliquidade, pronta a decretar o colapso de toda a estrutura e a necessidade de reconstrução geral.
As mulheres aquiesceram à presença masculina, mas não atrasaram os afazeres, quase mecânicas na disposição dos objectos, separando o pessoal do neutro, identificando este grupo como o dos bens doáveis, e não esquecendo um espaço transitório, para artigos que não integravam imediatamente nenhuma das categorias anteriores.
Da gaveta da mesinha de cabeceira foram contabilizados dez envelopes e doze folhas de papel de carta rosa velho, antes de chegar a vez da pequena caixa de cartão revestida a veludo vermelho, em forma de coração que, aberta, um braço esticado aproximou de Ismael, mantendo a tampa para cima e o anel, no interior, visível, se não reluzente, que pálido se abrigava. A mão tremeu-lhe, mas aceitou o depósito, sem deixá-lo cair.
– Ela iria gostar que ficasses com ele.
Ismael aquiesceu, olhando para a caixa inerte. Um coração sem batimento cardíaco. Passou um dedo pelo arco, que sabia ser a parte superior de uma aliança, em prata para não ser cara, para não ser dourada, para não ser assaltada. No seu dedo anelar havia uma em tudo idêntica, menos no diâmetro, que os homens foram feitos com os dedos mais grossos. A sua tinha sido lavada pelas lágrimas que a mão empurrara do rosto, esta estava baça desde que os dedos dela se tinham tornado demasiado finos, perdera o brilho na clausura daquele caixão.
À passagem do dedo pelo aro de metal, os ponteiros do relógio de parede aquiesceram a uma ordem muda e inverteram o seu progresso, primeiro sorrateiramente, como se encontrassem a resistência do mecanismo, mas as leis da inércia não se compadecem com a rotação das roldanas e seis anos retrocederam em poucos segundos, com correspondentes migrações solares por trás do cortinado, sem esquecer os dias de chuva, tempestade e intermédio. Rodas, tambores e tiretes, fusos, parafusos e pinhões, caixa, vidro e botões agarraram-se ao que puderam e mantiveram as suas posições, assistindo ao rodopiar alucinante daquilo a que chamavam setas desde que tinham visto um western e imaginavam-se na mesma espiral rumo à fantasia que já se tinha apropriado de Ismael e ameaçava dominar o mundo.
Nem do prego se soltou nem o vidro se quebrou, e o relógio manteve a guarda ao quarto que não parava de mudar. As expeditas camareiras tinham-se esfumado no ar, alvo do revoltear das areias do tempo e da distracção proporcionada pelas emolduradas alterações climáticas, e a metrópole de adornos vestiu e despiu vezes sem conta a sentada figura feminina que não continha as lágrimas no seu abandono, de cabeça baixa e mãos enclavinhadas no regaço.
Ismael acercou-se, curvando-se sobre um joelho, paladino em juramento de eterna devoção, mas tristemente calando a impotência em proteger a sua soberana do inimigo que, independentemente das voltas que o relógio desse no sentido contrário ao que usualmente operava, iniciara já o compasso de corroê-la órgão a órgão, e só se saciaria quando o último sopro de vida da sua hóspede precedesse o fecho da tampa sobre a qual deitaria simbólica terra, que não limparia às calças para que lhe queimasse chagas e secasse veios e a memória de que nada pudera fazer ardesse sempre que cerrasse os olhos e sentisse, sobre ele também, fechar-se a dita tampa que à última morada o condenaria, por mais que a vista se lhe mareasse, os lábios implorassem ou os médicos dissessem que tinham feito tudo o que podiam.
Quando os seus dedos desajeitadamente demandaram os dela e resvalaram no marmóreo hirto que encontraram no seu lugar, o rosto que os cabelos encobriam e os ombros ladeavam fez-se divisar em toda a sua dolorosa majestade, tão real quanto a recordava, tão jovem quanto a memória bloqueara, tão dilacerante como quando a perdera.
– Se quiseres acabar, eu compreendo.
Dos lábios dela para os seus ouvidos, ecoando pelas paredes e reverberando destas, as palavras que sabia estar ali para ouvir e reproduzir, consciente da desonestidade da interrogação e da sua inerente inevitabilidade. Agrediram-no então como o desgostavam agora, pois reconhecia nelas a falsa oferta de uma alternativa, o envenenado anzol do desespero que constituía o derradeiro recurso do cego face ao abismo, pronto a saltar para o desconhecido munido apenas dos dedos dobrados em figas, ouvidos à escuta do som de atarefadas agulhas em pleno fabrico da rede de segurança, tentando engrossar o ar entre ambos para que a queda fosse mais vagarosa, requebrada pelo algodão que revestia a distância, absorvia o suor frio e abafava o terror.
– Se quiseres acabar, eu compreendo.
Desta vez, foi a sua própria voz que lhe chegou aos ouvidos e detestou cada sílaba, amassadas que vinham num ácido que lhe repuxava as gengivas e lacrimejava a vista. A fase interventiva vinha desocupar a de espectador, fintando as defesas com despudor e devolvendo-o à acção, a adrenalina descarregada crispando-lhe os dedos nos que se retraíam com um queixume e acabaram por soltar-se com febril intensidade, na urgência desse acto conquistando as suas próprias feições e, com isso, despojando o passado do seu aperto controlador.
Foi, por isso, já Élia quem verbalizou, no seu muito mais combativo semblante:
– O que é que compreendes?
Ismael, que não tinha mais do que estas palavras preparadas num labirinto de ideias soltas, repescadas a um passado longínquo onde as contestara com um abraço envolvente e sussurradas expressões de dedicação infinda, procurou encadeamento e encontrou a garganta seca. Élia não ia facilitar-lhe a argumentação e isso contribuiria para expor a hipocrisia da mesma, coisas há que têm de ser ditas para não ficarem por dizer, sob pena de coros gregos velarem incessantemente a oportunidade de apontarem a falha com um dedo acusador. As mãos começaram a tremer-lhe e procurou ocultar o nervosismo pondo-se de pé e servindo-se dos bolsos das calças, de onde as retirou de seguida, temendo que o aspecto casual fosse mal interpretado.
– O que quero dizer é que … Não é que eu queira que …
Inspirou fundo. O que queria dizer-lhe era que receava pela sua segurança e considerava não ter o direito de sobrecarregá-la com a responsabilidade do corte dos laços, quando era perfeitamente plausível que o quisesse fazer, exposta que estava a um perigo dificilmente equacionável neste momento, pelo mero efeito da proximidade entre ambos, e demasiadas perguntas sem resposta pairavam sobre os eventos das últimas horas, sem que o complicadíssimo puzzle de vidros espalhados pelo chão trouxesse a menor luz à incógnita do seu sapato ter sido assassinado intencionalmente ou estar no lugar errado à hora certa, poupando-lhe a vida com o seu serviço de meia sola mais competente do que uma biqueira de aço.
Foi a vez de Élia se levantar, auxiliada pelas palavras que pediam uma posição de ataque, ao que ela e Ismael se enfrentaram numa inconsciente deslocação circular, em redor de um ponto indistinguível a olhares menos geométricos, as costas voltadas para as paredes a evitarem involuntariamente ângulos e obstáculos, as mãos a erguerem-se a uma altura confortável para agredirem e defenderem-se, os dedos indecisos ainda entre fecharem-se e manterem-se abertos, falanges, falanginhas e falangetas a prepararem-se para o impacto que iria repuxar os tendões e trazer sangue à boca da derme.
– Eu sou esteticista, mas não sou burra. Posso passar o dia a dizer que a camomila faz desinchar o rosto, o azeite dá volume ao cabelo, um pouco de gelo ajuda a fixar a maquilhagem e o melhor esfoliante é uma mistura de mel e açúcar, mas, caramba, não é preciso ser uma física nuclear para perceber que as camas onde te deitas atraem a morte!
Ismael, preso no emaranhado da iluminação natalícia bruxuleante das suas fracassadas tentativas de construção frásica, tentou reagir, mas aquilo que a sua cabeça gesticulou tanto tinha traços de aquiescência quanto de negação, o que o irritou e confundiu, sem propósito para ele ou para Élia.
– Se eu quiser acabar, tu compreendes… – continuou ela, agressividade e descrença a trocarem de lugar na sua expressão a cada piscar de olhos. – Essa frase só à chapada. Cheguei eu a esta idade para ouvir semelhante estupidez.
A última palavra articulada fez disparar todos os botões de alarme na cabeça de Ismael. Era perfeitamente capaz de isolar este ponto como o derradeiro elo de discussão racional antes da perda de controlo. Entrariam numa etapa de progressiva alienação, descendente e degenerativa, rumo à inconsequência e a um fim que rapidamente escalaria de iminente a ponto assente. Aqui, e o feixe luminoso do apontador incidiu sobre os ombros de Élia, podem observar a óbvia tensão ao nível dos músculos, o ligeiro arquear para dentro da coluna vertebral e, notem, a postura está em consonância com o timbre vocal mais estridente. Contudo, mesmo identificando toda esta informação, a violência verbal pede reciprocidade, num impulso de continuidade dificilmente declinável, o desafio do braço-de-ferro está lançado e ninguém dará o braço a torcer, porque a sua finalidade se exercita no sentido oposto.
– Mas, Ismael – continuava Élia, glaciar – eu compreendo, compreendo perfeitamente.
Não foi capaz de ouvir nem mais uma palavra. Com um braço a puxá-lo para o arremesso e outro para a retirada, lançou-se para a frente e arrebatou o corpo de Élia, escondendo o rosto dela no ombro e o seu nos cabelos dela, e nesse abraço desafiou o destino, com palavras que saíram em torrente, apressadas como o sangue que os pulmões bombeavam e o coração acolhia.
– Eu sei que compreendes! Sei que leste para além do que disse e sabes que não havia a menor honestidade nessas palavras. Estava só a tentar proteger-te, a tentar proteger-me, a afastar o perigo através do simples afastamento. Sei que percebeste que estou cheio de medo. Medo de gostar de ti e medo de perder-te. Medo de ter finalmente encontrado alguém com quem me sinto bem, com quem gosto de estar, com quem me sinto abrigado. Seja na sofreguidão do sexo ou na doçura do recolhimento, seja a imaginar-nos de férias nos locais mais paradisíacos ou a fazer coisas simples que há muito perdi a esperança de fazer com a companhia perfeita …
Ismael parou para respirar, engoliu em seco, sentiu-se drenado. Élia aproveitou a pausa para soltar-se do aperto dos braços dele o suficiente para poder olhá-lo nos olhos e, tocando-lhe no queixo com a ponta de um dedo, disse, numa mudança de tom que não passou despercebida:
– És uma caixinha de surpresas, não há dúvida …
Ismael aproveitou a oportunidade para afagar-lhe o rosto e, quando abriu a boca, as palavras voltaram a sair:
– Não quero perder-te. Não me sentia tão feliz, como quando estou contigo, há muito tempo. Só me apetece agarrar em ti e fugir para longe, para um sítio onde ninguém nos conheça, e começar de novo, sentir-me uma pessoa nova, sem o peso do passado e a esperança no futuro. – Parando para reagrupar-se, aproveitou a subida de temperatura no quarto para juntar o urgente ao pragmático: – Escuta, isto é muito importante. Mistral. Ontem falei-te nele, mas depois do que aconteceu, tenho de frisá-lo ainda mais: é perigoso. Atrás das grades ou não, parece ter decidido pôr as garras de fora. Antes de ser preso, comandava um pequeno exército de seguidores, recrutados de acordo com as suas necessidades e que utilizou para a realização de diversos crimes. Não sei o tamanho da rede actual nem como é que lhes transmite as ordens ou o que tem em mente mas, de alguma forma, tem um plano. Se estiver atrás de vingança, temos de pensar seriamente na tua protecção.
Puxou Élia para a cama e sentaram-se. Ela seguiu-o docilmente, o que o fez crer que o pior podia já ter passado.
– Se quiseres ficar em casa, consigo destacar-te um agente da PSP para guardar a porta. Ligas para o trabalho, dizes que estás doente, ficas por aqui, um dia de folga a ver televisão ou a comer porcarias, o que te apetecer, música e um livro, um DVD que tenhas para aí ainda no celofane. Acho melhor, até perceber o que se passa, que não te exponhas demasiado. Ainda não sei o que significa a moça deixada na minha cama nem se este tiro foi um aviso ou apenas uma táctica de amedrontamento, mas não posso arriscar a tua vida enquanto tento perceber. Tenho uma reunião daqui a bocado na sede, vou saber a identidade dela e o que os meus colegas descobriram no Alentejo. Até ter mais pistas com que trabalhar, preferia não me preocupar com a tua segurança.
– Mistral, ou quem quer que seja, teve o dia de ontem e esta noite toda para disparar sobre mim, mas esperou até estares sozinho. É um jogo do gato e do rato contigo, eu não tenho nada a ver. Vai lá trabalhar as tuas pistas que eu não me posso dar ao luxo de faltar ao emprego, nem quero. Se ficasse aqui, subia pelas paredes…
– Tens a certeza? Não me perdoaria, se te acontecesse alguma coisa – Ismael humedeceu os lábios, pensou depressa. Não queria mencionar que Mistral podia ter ficado a admirar o quadro de polícias e jornalistas à porta de casa dele, na primeira noite e que, por isso, só descobrira a morada de Élia na segunda, ao segui-lo até lá. A razão de só ter disparado de manhã também podia prender-se com questões logísticas. Afinal, o atirador não estivera encostado à sombra da bananeira toda a noite, tivera de descobrir quais eram as janelas de Élia, qual o mais directo apartamento do outro lado da rua, como arrombá-lo e manietar os moradores sem dar nas vistas e, entretanto, a falta de luminosidade no quarto obrigara-o a esperar pela claridade para ter um alvo. – Só até à hora de almoço? Ligo-te depois da reunião e, conforme o resultado, logo se vê? Por favor?
Élia suspirou.
– É claro que estou apreensiva, já to disse. Nunca tinha visto um cadáver nem sangue que um penso rápido não estancasse. Quando cheguei a casa estava um caco, tremia por todos os lados, tive de tomar dois comprimidos para adormecer. Fui trabalhar sem pensar duas vezes, o que foi uma sorte, porque se me tivesses sugerido que não saísse de casa, ontem é que não tinha saído mesmo. Mas fui e consegui distrair-me dos eventos da noite conversando com as outras miúdas e concentrando-me nas minhas funções, acabei por ficar mais ressentida com o facto de não teres ligado do que com o resto e hoje não sou capaz de ficar em casa. – Olhou para o relógio. – Se for só de manhã, ainda posso tentar adiar os agendamentos que tiver, mas à tarde não me encontras aqui. Combinado?
Ismael sorriu. Tinha ganho algumas horas, pelo menos. Precisava de algo mais concreto em que entreter o dente e isso só ia surgir na reunião.
– Não sei porque é que, de repente, estás tão relaxado – comentou Élia, endireitando-se. – Compreendes que ainda não decidi se te quero na minha vida. – Com o queixo, apontou os estilhaços no chão. – E deves-me uma janela.
Mas também sorria.
As mulheres aquiesceram à presença masculina, mas não atrasaram os afazeres, quase mecânicas na disposição dos objectos, separando o pessoal do neutro, identificando este grupo como o dos bens doáveis, e não esquecendo um espaço transitório, para artigos que não integravam imediatamente nenhuma das categorias anteriores.
Da gaveta da mesinha de cabeceira foram contabilizados dez envelopes e doze folhas de papel de carta rosa velho, antes de chegar a vez da pequena caixa de cartão revestida a veludo vermelho, em forma de coração que, aberta, um braço esticado aproximou de Ismael, mantendo a tampa para cima e o anel, no interior, visível, se não reluzente, que pálido se abrigava. A mão tremeu-lhe, mas aceitou o depósito, sem deixá-lo cair.
– Ela iria gostar que ficasses com ele.
Ismael aquiesceu, olhando para a caixa inerte. Um coração sem batimento cardíaco. Passou um dedo pelo arco, que sabia ser a parte superior de uma aliança, em prata para não ser cara, para não ser dourada, para não ser assaltada. No seu dedo anelar havia uma em tudo idêntica, menos no diâmetro, que os homens foram feitos com os dedos mais grossos. A sua tinha sido lavada pelas lágrimas que a mão empurrara do rosto, esta estava baça desde que os dedos dela se tinham tornado demasiado finos, perdera o brilho na clausura daquele caixão.
À passagem do dedo pelo aro de metal, os ponteiros do relógio de parede aquiesceram a uma ordem muda e inverteram o seu progresso, primeiro sorrateiramente, como se encontrassem a resistência do mecanismo, mas as leis da inércia não se compadecem com a rotação das roldanas e seis anos retrocederam em poucos segundos, com correspondentes migrações solares por trás do cortinado, sem esquecer os dias de chuva, tempestade e intermédio. Rodas, tambores e tiretes, fusos, parafusos e pinhões, caixa, vidro e botões agarraram-se ao que puderam e mantiveram as suas posições, assistindo ao rodopiar alucinante daquilo a que chamavam setas desde que tinham visto um western e imaginavam-se na mesma espiral rumo à fantasia que já se tinha apropriado de Ismael e ameaçava dominar o mundo.
Nem do prego se soltou nem o vidro se quebrou, e o relógio manteve a guarda ao quarto que não parava de mudar. As expeditas camareiras tinham-se esfumado no ar, alvo do revoltear das areias do tempo e da distracção proporcionada pelas emolduradas alterações climáticas, e a metrópole de adornos vestiu e despiu vezes sem conta a sentada figura feminina que não continha as lágrimas no seu abandono, de cabeça baixa e mãos enclavinhadas no regaço.
Ismael acercou-se, curvando-se sobre um joelho, paladino em juramento de eterna devoção, mas tristemente calando a impotência em proteger a sua soberana do inimigo que, independentemente das voltas que o relógio desse no sentido contrário ao que usualmente operava, iniciara já o compasso de corroê-la órgão a órgão, e só se saciaria quando o último sopro de vida da sua hóspede precedesse o fecho da tampa sobre a qual deitaria simbólica terra, que não limparia às calças para que lhe queimasse chagas e secasse veios e a memória de que nada pudera fazer ardesse sempre que cerrasse os olhos e sentisse, sobre ele também, fechar-se a dita tampa que à última morada o condenaria, por mais que a vista se lhe mareasse, os lábios implorassem ou os médicos dissessem que tinham feito tudo o que podiam.
Quando os seus dedos desajeitadamente demandaram os dela e resvalaram no marmóreo hirto que encontraram no seu lugar, o rosto que os cabelos encobriam e os ombros ladeavam fez-se divisar em toda a sua dolorosa majestade, tão real quanto a recordava, tão jovem quanto a memória bloqueara, tão dilacerante como quando a perdera.
– Se quiseres acabar, eu compreendo.
Dos lábios dela para os seus ouvidos, ecoando pelas paredes e reverberando destas, as palavras que sabia estar ali para ouvir e reproduzir, consciente da desonestidade da interrogação e da sua inerente inevitabilidade. Agrediram-no então como o desgostavam agora, pois reconhecia nelas a falsa oferta de uma alternativa, o envenenado anzol do desespero que constituía o derradeiro recurso do cego face ao abismo, pronto a saltar para o desconhecido munido apenas dos dedos dobrados em figas, ouvidos à escuta do som de atarefadas agulhas em pleno fabrico da rede de segurança, tentando engrossar o ar entre ambos para que a queda fosse mais vagarosa, requebrada pelo algodão que revestia a distância, absorvia o suor frio e abafava o terror.
– Se quiseres acabar, eu compreendo.
Desta vez, foi a sua própria voz que lhe chegou aos ouvidos e detestou cada sílaba, amassadas que vinham num ácido que lhe repuxava as gengivas e lacrimejava a vista. A fase interventiva vinha desocupar a de espectador, fintando as defesas com despudor e devolvendo-o à acção, a adrenalina descarregada crispando-lhe os dedos nos que se retraíam com um queixume e acabaram por soltar-se com febril intensidade, na urgência desse acto conquistando as suas próprias feições e, com isso, despojando o passado do seu aperto controlador.
Foi, por isso, já Élia quem verbalizou, no seu muito mais combativo semblante:
– O que é que compreendes?
Ismael, que não tinha mais do que estas palavras preparadas num labirinto de ideias soltas, repescadas a um passado longínquo onde as contestara com um abraço envolvente e sussurradas expressões de dedicação infinda, procurou encadeamento e encontrou a garganta seca. Élia não ia facilitar-lhe a argumentação e isso contribuiria para expor a hipocrisia da mesma, coisas há que têm de ser ditas para não ficarem por dizer, sob pena de coros gregos velarem incessantemente a oportunidade de apontarem a falha com um dedo acusador. As mãos começaram a tremer-lhe e procurou ocultar o nervosismo pondo-se de pé e servindo-se dos bolsos das calças, de onde as retirou de seguida, temendo que o aspecto casual fosse mal interpretado.
– O que quero dizer é que … Não é que eu queira que …
Inspirou fundo. O que queria dizer-lhe era que receava pela sua segurança e considerava não ter o direito de sobrecarregá-la com a responsabilidade do corte dos laços, quando era perfeitamente plausível que o quisesse fazer, exposta que estava a um perigo dificilmente equacionável neste momento, pelo mero efeito da proximidade entre ambos, e demasiadas perguntas sem resposta pairavam sobre os eventos das últimas horas, sem que o complicadíssimo puzzle de vidros espalhados pelo chão trouxesse a menor luz à incógnita do seu sapato ter sido assassinado intencionalmente ou estar no lugar errado à hora certa, poupando-lhe a vida com o seu serviço de meia sola mais competente do que uma biqueira de aço.
Foi a vez de Élia se levantar, auxiliada pelas palavras que pediam uma posição de ataque, ao que ela e Ismael se enfrentaram numa inconsciente deslocação circular, em redor de um ponto indistinguível a olhares menos geométricos, as costas voltadas para as paredes a evitarem involuntariamente ângulos e obstáculos, as mãos a erguerem-se a uma altura confortável para agredirem e defenderem-se, os dedos indecisos ainda entre fecharem-se e manterem-se abertos, falanges, falanginhas e falangetas a prepararem-se para o impacto que iria repuxar os tendões e trazer sangue à boca da derme.
– Eu sou esteticista, mas não sou burra. Posso passar o dia a dizer que a camomila faz desinchar o rosto, o azeite dá volume ao cabelo, um pouco de gelo ajuda a fixar a maquilhagem e o melhor esfoliante é uma mistura de mel e açúcar, mas, caramba, não é preciso ser uma física nuclear para perceber que as camas onde te deitas atraem a morte!
Ismael, preso no emaranhado da iluminação natalícia bruxuleante das suas fracassadas tentativas de construção frásica, tentou reagir, mas aquilo que a sua cabeça gesticulou tanto tinha traços de aquiescência quanto de negação, o que o irritou e confundiu, sem propósito para ele ou para Élia.
– Se eu quiser acabar, tu compreendes… – continuou ela, agressividade e descrença a trocarem de lugar na sua expressão a cada piscar de olhos. – Essa frase só à chapada. Cheguei eu a esta idade para ouvir semelhante estupidez.
A última palavra articulada fez disparar todos os botões de alarme na cabeça de Ismael. Era perfeitamente capaz de isolar este ponto como o derradeiro elo de discussão racional antes da perda de controlo. Entrariam numa etapa de progressiva alienação, descendente e degenerativa, rumo à inconsequência e a um fim que rapidamente escalaria de iminente a ponto assente. Aqui, e o feixe luminoso do apontador incidiu sobre os ombros de Élia, podem observar a óbvia tensão ao nível dos músculos, o ligeiro arquear para dentro da coluna vertebral e, notem, a postura está em consonância com o timbre vocal mais estridente. Contudo, mesmo identificando toda esta informação, a violência verbal pede reciprocidade, num impulso de continuidade dificilmente declinável, o desafio do braço-de-ferro está lançado e ninguém dará o braço a torcer, porque a sua finalidade se exercita no sentido oposto.
– Mas, Ismael – continuava Élia, glaciar – eu compreendo, compreendo perfeitamente.
Não foi capaz de ouvir nem mais uma palavra. Com um braço a puxá-lo para o arremesso e outro para a retirada, lançou-se para a frente e arrebatou o corpo de Élia, escondendo o rosto dela no ombro e o seu nos cabelos dela, e nesse abraço desafiou o destino, com palavras que saíram em torrente, apressadas como o sangue que os pulmões bombeavam e o coração acolhia.
– Eu sei que compreendes! Sei que leste para além do que disse e sabes que não havia a menor honestidade nessas palavras. Estava só a tentar proteger-te, a tentar proteger-me, a afastar o perigo através do simples afastamento. Sei que percebeste que estou cheio de medo. Medo de gostar de ti e medo de perder-te. Medo de ter finalmente encontrado alguém com quem me sinto bem, com quem gosto de estar, com quem me sinto abrigado. Seja na sofreguidão do sexo ou na doçura do recolhimento, seja a imaginar-nos de férias nos locais mais paradisíacos ou a fazer coisas simples que há muito perdi a esperança de fazer com a companhia perfeita …
Ismael parou para respirar, engoliu em seco, sentiu-se drenado. Élia aproveitou a pausa para soltar-se do aperto dos braços dele o suficiente para poder olhá-lo nos olhos e, tocando-lhe no queixo com a ponta de um dedo, disse, numa mudança de tom que não passou despercebida:
– És uma caixinha de surpresas, não há dúvida …
Ismael aproveitou a oportunidade para afagar-lhe o rosto e, quando abriu a boca, as palavras voltaram a sair:
– Não quero perder-te. Não me sentia tão feliz, como quando estou contigo, há muito tempo. Só me apetece agarrar em ti e fugir para longe, para um sítio onde ninguém nos conheça, e começar de novo, sentir-me uma pessoa nova, sem o peso do passado e a esperança no futuro. – Parando para reagrupar-se, aproveitou a subida de temperatura no quarto para juntar o urgente ao pragmático: – Escuta, isto é muito importante. Mistral. Ontem falei-te nele, mas depois do que aconteceu, tenho de frisá-lo ainda mais: é perigoso. Atrás das grades ou não, parece ter decidido pôr as garras de fora. Antes de ser preso, comandava um pequeno exército de seguidores, recrutados de acordo com as suas necessidades e que utilizou para a realização de diversos crimes. Não sei o tamanho da rede actual nem como é que lhes transmite as ordens ou o que tem em mente mas, de alguma forma, tem um plano. Se estiver atrás de vingança, temos de pensar seriamente na tua protecção.
Puxou Élia para a cama e sentaram-se. Ela seguiu-o docilmente, o que o fez crer que o pior podia já ter passado.
– Se quiseres ficar em casa, consigo destacar-te um agente da PSP para guardar a porta. Ligas para o trabalho, dizes que estás doente, ficas por aqui, um dia de folga a ver televisão ou a comer porcarias, o que te apetecer, música e um livro, um DVD que tenhas para aí ainda no celofane. Acho melhor, até perceber o que se passa, que não te exponhas demasiado. Ainda não sei o que significa a moça deixada na minha cama nem se este tiro foi um aviso ou apenas uma táctica de amedrontamento, mas não posso arriscar a tua vida enquanto tento perceber. Tenho uma reunião daqui a bocado na sede, vou saber a identidade dela e o que os meus colegas descobriram no Alentejo. Até ter mais pistas com que trabalhar, preferia não me preocupar com a tua segurança.
– Mistral, ou quem quer que seja, teve o dia de ontem e esta noite toda para disparar sobre mim, mas esperou até estares sozinho. É um jogo do gato e do rato contigo, eu não tenho nada a ver. Vai lá trabalhar as tuas pistas que eu não me posso dar ao luxo de faltar ao emprego, nem quero. Se ficasse aqui, subia pelas paredes…
– Tens a certeza? Não me perdoaria, se te acontecesse alguma coisa – Ismael humedeceu os lábios, pensou depressa. Não queria mencionar que Mistral podia ter ficado a admirar o quadro de polícias e jornalistas à porta de casa dele, na primeira noite e que, por isso, só descobrira a morada de Élia na segunda, ao segui-lo até lá. A razão de só ter disparado de manhã também podia prender-se com questões logísticas. Afinal, o atirador não estivera encostado à sombra da bananeira toda a noite, tivera de descobrir quais eram as janelas de Élia, qual o mais directo apartamento do outro lado da rua, como arrombá-lo e manietar os moradores sem dar nas vistas e, entretanto, a falta de luminosidade no quarto obrigara-o a esperar pela claridade para ter um alvo. – Só até à hora de almoço? Ligo-te depois da reunião e, conforme o resultado, logo se vê? Por favor?
Élia suspirou.
– É claro que estou apreensiva, já to disse. Nunca tinha visto um cadáver nem sangue que um penso rápido não estancasse. Quando cheguei a casa estava um caco, tremia por todos os lados, tive de tomar dois comprimidos para adormecer. Fui trabalhar sem pensar duas vezes, o que foi uma sorte, porque se me tivesses sugerido que não saísse de casa, ontem é que não tinha saído mesmo. Mas fui e consegui distrair-me dos eventos da noite conversando com as outras miúdas e concentrando-me nas minhas funções, acabei por ficar mais ressentida com o facto de não teres ligado do que com o resto e hoje não sou capaz de ficar em casa. – Olhou para o relógio. – Se for só de manhã, ainda posso tentar adiar os agendamentos que tiver, mas à tarde não me encontras aqui. Combinado?
Ismael sorriu. Tinha ganho algumas horas, pelo menos. Precisava de algo mais concreto em que entreter o dente e isso só ia surgir na reunião.
– Não sei porque é que, de repente, estás tão relaxado – comentou Élia, endireitando-se. – Compreendes que ainda não decidi se te quero na minha vida. – Com o queixo, apontou os estilhaços no chão. – E deves-me uma janela.
Mas também sorria.