Capítulo 14 – Nua e Fria
O cabelo, apesar das tonalidades de rosa e branco, desvanecidas pela lavagem, era loiro na raiz. A testa apresentava marcas atenuadas de acne, mas as bochechas eram de pêssego. A nave do nariz era suave e arrebitava na base, com narinas levemente assimétricas. As mucosas da boca eram bulbiformes e o lábio superior repuxava no tubérculo abaixo do arco de cupido, uma atrofia vulgarmente reveladora dos dois incisivos frontais e que aqui não fugia à regra.
O pescoço fino de pilares robustos seria harmónico se a vista não torneasse um discreto sinal de nascença, as clavículas abriam-se com o contorno de asas, os seios frondosos desafiavam a gravidade, as costelas serviam de paralelas para a perpendicular que desfazia a cintura em anca, a púbis espreitava onde as linhas voltavam a arrumar-se, saliente de clítoris, recolhida de lábios.
Ombros delineados por exercícios de resistência, braços adornados por penugem abaixo do cotovelo e mãos que chegavam a meio das coxas se os dedos fossem esticados. As unhas tinham sido cobertas de gel e coloridas com habilidade na repetição de um alegre padrão colorido que distraía da constituição carnuda dos dígitos. O umbigo consistia num invulgar sulco vertical e não apresentava matéria adiposa em redor. Os joelhos eram ossudos, os tornozelos idem e os dedos dos pés egípcios.
Ismael tocou-lhe inadvertidamente na curvatura da planta do pé ao consultar a etiqueta da morgue com a identificação do cadáver, presa ao hálux por um cordel. À sensação de frieza devolveu-lhe o cérebro a imagem de uma massagem calorosa, mas na sua imaginação fazia-a aos pés de Élia e não a Evelina Freitas, natural de Tijolo Grande, Alto Alentejo, vinte e dois anos, um metro e cinquenta e oito, aproximadamente cinquenta e três quilos antes da remoção dos órgãos para pesagem e cultura. Seguindo inversamente a linha da cicatriz da autópsia e saltando o lenho na garganta que precedera a intervenção médico-legista, a atenção do inspector retornou ao rosto da jovem, convicto de que nunca tivera o menor contacto com ela e confuso pela sua selecção como cartão de visita por parte de Mistral. Que significado teria esta empregada de tabacaria, com o ensino secundário incompleto, recentemente desaparecida da sua localidade natal, de quem nunca ouvira falar?
João Santos Magnório, Coordenador de Investigação Criminal da Directoria de Lisboa e Vale do Tejo da Polícia Judiciária, aguardou alguns instantes antes de, com um gesto de cabeça, instruir o assistente de perícia forense a empurrar a gaveta com o corpo de volta à parede. Estivera atento a cada inflexão do rosto de Ismael e a leitura da sua fisionomia, até certo ponto, sossegara-o. Podia não se tratar de uma ciência exacta, mas a memorização do catálogo de expressões faciais simplificava o processo de interpretação e o instinto, que se traduzia como impulso para os humanos, permitia-lhe confiar na sua capacidade de identificação dos mais comuns tiques nervosos.
Sendo impossível não sentir o peso da presença que tinham acabado de selar, lamentou, em sussurro – Tão nova … – antes de esticar as costas e voltar a sua atenção para Ismael: – Considero-me um bom juiz de carácter e tenho-te em boa estima. Já passaste por várias brigadas e nunca se levantou a menor suspeita de transgressões ou conduta imprópria. Tens um bom record de processos que garantiram condenações. És obstinado, o que pode ser bom, mas também cai na definição de problema de feitio, mas …
Magnum suspendeu a própria voz com um abrupto cerrar de maxilares e recriminou-se interiormente. Os inspectores Simões e Pedralva, porque encarregues do processo, também ali estavam, interessados, tanto quanto ele, em assistir ao reconhecimento do cadáver por Ismael, mas esse episódio tinha-se, entretanto, concluído e para o que se seguia eram, se a palavra não fosse demasiado severa, dispensáveis.
– Deem-nos um minuto, rapazes.
Pedro Pedralva ainda tentou protestar, mas César Simões puxou-o pela manga. Desmotivados mas solícitos, dirigiram-se para a porta, levando consigo o encarregado da morgue. O CIC aguardou que a porta batesse atrás deles. A interrupção cortara o momentum e isso incomodava-o, porque tanto a forma como o conteúdo eram necessários ao equilíbrio de um bom discurso que teria, necessariamente, de ser recuperado. Deslocou a sua posição alguns passos resignados, contornando as duas marquesas cobertas por lençóis com recorte humanóide e aproximando-se da única parede com janelas, duas largas fissuras rente ao tecto, única localização possível para a comunicação com o exterior num compartimento subterrâneo. Ismael manteve-se imóvel, descontando o facto de ter trocado o peso de uma perna para a outra.
– Ontem fui correr à minha praia – retomou Magnum, rodando nos calcanhares. Ismael percebeu ser um rodeio, mas era cedo para concluir tratar-se de um mau sinal; à partida, bom não era. O CIC referia-se a uma praia fluvial de difícil acesso e, portanto, geograficamente exclusiva, situada no Seixal, próxima do arsenal da Base Naval do Alfeite, a que se deslocava amiúde para pescar e pensar; ou assim dizia, quando não se perdia em dissertações sobre as bochechas redondas e rosadas da empregada do café-esplanada que abrira negócio no pontão da Ponta dos Corvos, com vista privilegiada para, simultaneamente, a baía do Seixal, os moinhos do Barreiro, os estaleiros da Margueira e a zona ribeirinha de Lisboa. – Ainda não era bem pôr-do-sol e caía uma iluminação dourada sobre a água. A linha do horizonte estava muito bonita e as nuvens, em número pouco abundante, não cortavam a luz. Muito agradável. Tirei até algumas fotografias, que vou carregar no Facebook. – Foi introduzida uma pausa para Magnum recordar as fotos e Ismael imaginar o cenário.
– À corrente contrapunha-se a aragem, provocando uma espécie de choque de ondulações, mas sem colisão. Isto é, a maré empurrava para um lado e o vento para o outro e a superfície da água, observada com atenção, parecia mover-se em ambas direcções, aceitando-as pacificamente, como se uma se deslocasse sob a outra. Uma extraordinária textura de escamas, como duas serpentes a passarem uma através da outra... Sei que não me estou a explicar bem e que até a natureza estática das fotos não será tão esclarecedora como uma gravação de vídeo, que podia ter feito se não preferisse, instintivamente, fotografia a filmagem.
Na desconfortável posição de ouvinte, Ismael deixou-se distrair pela imagem de Evelina Freitas a boiar na água de escamas vibrantes, cujas ondas se iam enroscando em redor do cadáver e, ainda que intuísse que o discurso de Magnum não apontava nessa direcção, sentiu arrepiarem-se-lhe os cabelos da nuca.
– Tive de adiar a corrida pela areia, que era a razão de ter lá ido, porque fiz mal as contas e, como ocorre sempre por ocasião da maré-cheia, a água cobre toda a extensão do areal. Assim, tive de improvisar e meti-me pelo mato rasteiro. Se o pé não pisa a areia, pelo menos a vista consome a beleza.
Uma vez mais, o CIC pareceu recolher-se à tela da memória.
– Ia eu nas minhas cogitações, que é ao que o cérebro se dedica quando corro, ando ou estou parado, e acabei por enveredar por um caminho diferente. Fui parar a um antigo armazém de salga do bacalhau, negócio fenecido mas outrora florescente na região, hoje constituído por três construções desfeitas mas alegradas por graffiti, que também fotografei.
As orelhas de Ismael espetaram e os ouvidos aguçaram à menção de graffiti. Teria Mistral deixado algum recado a Magnum, no sítio mais inesperado e aleatório possível?
– Um pouco adiante, um enorme cão amarelo elevou-se nas patas traseiras como um fervoroso alazão, apenas para avançar na minha direcção. Normalmente, é quando os animais vadios se interessam pelo meu cheiro que me conforta a segurança ter uma arma na mochila, mas desta vez conservei-a às costas, pois tinha visto que, no seu ponto de partida, repousava um casal, o qual, sentado no chão de pedra com as costas apoiadas nas do outro, lia cada um, impassivelmente, o seu livro.
Duas serpentes e um cão, uma praia e um velho armazém; fotografia, leitura e reino animal. Estes pareciam ser os elementos comuns da crónica e Mistral primava pela ausência. Ismael deitou um olhar à porta por onde Simões e Pedralva se tinham retirado. Para além da identidade de Evelina Freitas, que mais teriam eles recolhido de Tijolo Grande? Tentou mostrar-se atento ao relato do superior.
– O cão chegou até mim e o que queria, afinal, eram festas, e festas foram o que teve. Feliz, desatou a correr para longe, parando a meio para ver porque não o seguia e voltando para trás, repetindo a operação duas vezes e em ambas recebendo festas e o meu mais agradecido sorriso. Eventualmente, foi chamado pelos donos, que não abandonaram os livros nem a pose espelhada, mas ainda tentou uma derradeira vez vir ter comigo, desistindo por causa do terreno acidentado de sebes, labirínticas para a altura dele, e a distância que eu já lhe tinha dado, com o intuito de chegar ao molhe e sem saber que o adorável quadrúpede queria mais aconchego.
Magnum sorriu para consigo e observou Ismael. Este devolveu-lhe um aceno, a confirmar o interesse que não sentia.
– A grande coincidência é que, estando eu a ouvir, por auriculares, uma playlist composta por canções melancólicas e trágico-amorosas desde que saíra do carro, assim que o cão tornou clara a sua natureza amistosa tive a súbita envolvência da faixa Happy, originalmente cantada para aquela animação dos anões amarelos de jardineiras. Era a décima quarta faixa da compilação, pelo que o seu timing não podia ter sido mais perfeito. E este duplo complemento ao passeio foi a saborosa surpresa de um final de tarde solitário.
Havia satisfação na voz de Magnum e Ismael concluiu pelo desfecho da narrativa, ainda que tanto o seu significado e alcance permanecessem incógnitos.
– Compreendes o que te estou a dizer?
Ismael não compreendia e a incompreensão lia-se-lhe no rosto, ainda que tentasse ocultá-la, e Magnum não se impediu uma careta face à fácil leitura, até para um iniciado na arte de mapear tensões musculares. Suspirou.
– Apesar da solidez do teu álibi, com o teu vizinho a ter descido contigo de elevador e os empregados do restaurante a confirmarem que tu e a tua namorada irradiavam boa disposição, para além do próprio testemunho dela, do qual não temos razões para duvidar, a verdade é que há outros factores a considerar, como muito bem imaginas, e por isso terás de continuar suspenso durante esta fase da investigação. Não há outra hipótese. O Lopes já foi avisado de que continua a vigia com o Marques, que passa para o processo Duas Torres. Encerrou ontem um caso de semanas para o Ministério Público de Oeiras e veio mesmo a calhar, estava sem companhia desde que o Gomes se reformou no final do mês passado.
– Já falei com ele …
– Óptimo. Pelo que percebi, as escutas já foram todas montadas e o trabalho consiste agora em procurar indícios nas gravações.
– Sim, a linha de escutas já está funcional e estávamos a proceder às transcrições. Essa é a maior parte do trabalho em falta, mas teremos também de continuar a seguir todas as suas deslocações não designadas, para registo de prova e controlo de possíveis terceiros envolvidos.
– Teremos, terão – corrigiu Magnum. – A minha sugestão é que tires uns dias para conheceres melhor a tua namorada, vai com ela a sítios bonitos, à praia, pode ser que vos apareça um cão brincalhão no caminho e o adoptem antes dos donos terem tempo de colocar os marcadores nos livros e correrem atrás de vocês. – Sorriu antes de ficar sério. – Para já, vai ser uma suspensão com vencimento, invocando razões de cariz institucional e fazendo fé na cegueira burocrática, vamos ver se pega na contabilidade.
Ismael compreendia a inevitabilidade da suspensão. O facto de Evelina Freitas ter sido conduzida ao seu apartamento antes de dessanguinada implicava-o, era impossível contornar esse elefante. De alguma forma, desacreditá-lo fazia parte do objectivo de Mistral, ao qual não fora alheia a falta de arrombamento. Até haver uma explicação, iriam pairar sempre dúvidas.
– Outra coisa. Para não pôr esse peso nos ombros do Simões e do Pedralva, peço-te eu. De maneira a evitar sujeitar-te a um interrogatório formal, vou precisar de que redijas e assines uma declaração em que afirmas nunca ter entrado em contacto com a bela adormecida que voltou para de onde veio. Ou melhor, a verdade, se for outra. E tenho de repetir-te que não deves imiscuir-te, de forma directa ou indirecta, na investigação, por mais que te sintas compelido. Irá sempre prejudicar-te, se não te custar o emprego.
Ismael acenou com a cabeça e, para o chefe não lhe ler traços de insubordinação no rosto, tentou concentrar-se no que teria Magnum querido dizer com bela adormecida que voltou para de onde veio. Seria possível que se referisse ao facto de Evelina Freitas provir de numa localidade chamada Tijolo Grande e preparar-se para, como costuma dizer-se, fazer tijolo?
– Bom, vamos embora. – O CIC indicou a saída e ambos avançaram para a porta, um ligeiramente atrás do outro, que a estratificação hierárquica não funciona só na vertical.
Uma vez no corredor, reuniram-se a Simões e a Pedralva, que os aguardavam junto à máquina automática de cafés, cada um com o seu copo de plástico, o de Pedralva já com cinza de um cigarro mal apagado, que foi despejado no caixote do lixo enquanto se aproximavam. Os dois inspectores olharam de Ismael para Magnum e o desconforto era notório. O CIC estendeu a mão ao acompanhante:
– Fico à espera da tua declaração.
Entendendo, relutantemente, que a tensão se devia à renitência dos colegas em abordarem, ao seu alcance auditivo, o processo em que era pessoa de interesse, aceitou os dígitos de Magnum e acenou de cabeça aos demais, retirando-se corredor fora em precipitada aceleração, cerrando os dentes em vez dos punhos. Para distrair as mãos, ocupou-as com a procura do telemóvel pelos bolsos, deixando para o fim aquele onde o tinha para demorar mais tempo, sempre o narrador a meter-se com a personagem.
Tinha prometido a Élia ligar-lhe assim que houvesse novidades, mas as instruções do polegar sobre a película aderente resultaram numa chamada atendida por voicemail. Dirigindo a carregada sobrancelha da contrariedade ao aparelho, repetiu a operação e duplicou o resultado.
Optou pelos degraus em detrimento do elevador e, antes de atingir o átrio, foi surpreendido pelo som de abertura das portas que reclamavam vitória. Abanou a cabeça. O chefe suspendera-o, os colegas repeliam-no e Élia ignorava-o. O porteiro olhou-o de soslaio, sustido na sua despedida circunstancial pelo semblante ensombrado do agente que tardava em completar a retirada. Ismael tentou um último remate a Élia, mas o atendedor de chamadas provou ser um guarda-redes experiente.
Encarou o segurança, sentado na sua secretária da secção promocional, com cadeira da mesma cadeia e farda de modesta modista, e por pouco não desabafou a primeira máxima machista que lhe aflorou aos lábios. Impossível de travar era o rastilho já aceso dentro de si, que lhe fazia disparar a temperatura dentro da roupa e que nem um extintor se atrevia a aplacar. Estava oficialmente irritado.
Aos sons estrangulados do plástico eventualmente mais frágil do que o apregoado pela marca do smartphone, reagiu guardando-o no bolso de onde o retirara, esquecendo a localização de imediato. Em substituição, da memória chegou um passageiro interesse amoroso com algum tempo de espelho retrovisor, uma animada instrutora de condução que sonhava em ser dupla de cenas arriscadas, conhecida através de um acidente de viação provocado por incúria dela ao volante do carro avesso ao qual seguia ele. Socorridos pelo INEM na mesma ambulância, ouvira-a, desconcertado, matar o tempo da deslocação com o seguinte cenário: «Se acordasse entubado nos cuidados intensivos e alguém lhe dissesse que filmou o acidente e tem imagens dos destroços e da remoção dos corpos, incluindo o seu, quereria assistir?».
Não eram as saudades dela que a faziam acelerar até ao presente, mas uma característica que ele esperava não ser partilhada por Élia. Ivone, pois esse era o nome dela, que a própria actualizara para iVonE como utilizadora de redes sociais e, figas, numa antecipação a Hollywood, padecia da mania de nunca responder a mensagens electrónicas, fossem estas de aparelhos remotos ou fixos, em menos de três horas a contar da respectiva recepção, por mais urgente que fosse a questão, premente o pedido ou desejada a devolução de votos. Umas vezes explicava a demora, outras não, e ele ficava sempre com a sensação de ter sido conscientemente adiado. As pessoas avaliam as outras tendo em conta as suas próprias limitações e ele, se não respondia logo, era porque se estava borrifando.
Entre a ansiedade do porteiro e a insatisfação de Ismael, decidiu-se a rivalidade pela distanciação, acometendo este pela escancarada escadaria que separava o pórtico do portão, interrogando-se face à claridade do exterior onde tinha deixado o carro, o que, claro, tinha sido no estacionamento a céu aberto para onde apontou de seguida, não sem, involuntariamente, contar a primeira dezena de janelas em redor, por trás das quais poderia esconder-se um atirador, desistindo do escrutínio ao terminarem-se-lhe os dedos e concluir que já estaria morto, por mais paciente, ou prudente, que fosse o dedo no gatilho, adeus mundo cruel que se faz tarde, e antes de chegar tarde mais vale não aparecer, quem for de Braga feche a porta, nunca é demais avisar.
Cabeça por cima do labirinto de viaturas estacionadas, ao chegar àquela da qual tinha a chave pensou em ajoelhar-se uma vez mais e espreitar por baixo da carroçaria. Era este inato e quase paranoico instinto de sobrevivência que o impelira a insistir para que Élia permanecesse entre quatro paredes e longe de janelas até que a contactasse, para minimizar o risco de ser consumido pelo seu impulso protector até ter alguma indicação de como defendê-la. O problema é que as novidades eram tão parcas no elemento esclarecedor como no preventivo e a manhã revelara-se menos do que pródiga em cortesia profissional. Sem pensar segunda vez, ajoelhou-se e espreitou por baixo da carroçaria.
Acomodado no assento do condutor, instaurou e implementou um prazo que precederia a preocupação e preencheu o vazio com a contagem decrescente do seu cronómetro mental, exactamente dez minutos, mais segundo, menos segundo. À margem permaneceria o carro por explodir, a incontactabilidade de Élia e Evelina Freitas de Tijolo Grande a fazer tijolo na cave fresquinha do Instituto de Medicina Legal, que era onde o seu Honda deveria ter estado estacionado, que aqui no parque mais parecia uma fornalha e sem extras excluíra o ar condicionado, por uma razão que o ultrapassava desde que se apercebera do jeito que dava. Abriu a janela.
Élia comprometera-se a ficar em casa até lhe dar o ponto da situação e não ia partir do princípio de que o desrespeitara. Mesmo com uma noite como a da véspera, ela poderia ter voltado a adormecer ou ligado a televisão, estar a aspirar a casa, a ouvir música, no banho, a secar o cabelo, a lavar a loiça, a pintar as unhas; tudo tarefas que a privariam de ouvir o som do telemóvel ou de pegar-lhe sem sujá-lo. Ou estar numa complicada posição de ioga. Preferia imaginá-la numa complicada posição de ioga.
O telemóvel tocou. A vibração ajudou a localizá-lo. O visor identificou o remetente. Era Élia. Antes que o seu cérebro pudesse acautelá-lo sobre as eternas desvantagens da irreflexão face à moderação, já um simples toque nervoso os pusera em linha.
– Olá – disse Élia. – Tudo bem?
Ismael poderia finalmente satisfazer a sua curiosidade referida no parágrafo anterior ao anterior mas, numa primeira fase, o seu cérebro apenas lutou com o corpo por uma posição confortável dentro do carro, que nunca parecera tão apertado.
– Olá – respondeu, indeciso entre desapertar os botões da camisa ou descer outro vidro. Devia ter posto os auriculares com microfone incorporado, para dispensar o rectângulo junto ao ouvido, que o obrigava a ter o braço dobrado como apoio, mas não sabia deles. – Não fazes ideia de como é bom ouvir a tua voz – disse, porque era verdade e porque, ao telefone, o silêncio não é opção.
– Bem disposto? – A voz dela parecia estar.
– Não tem sido a manhã que o médico receitou – suspirou Ismael. – E tu, como te estás a aguentar?
– Até agora, não tenho de que me queixar.
Pela inesperada jovialidade, Élia fê-lo arquear uma sobrancelha. Estaria apreensivo pelos dois?
– Liguei-te há pouco e não atendeste – observou Ismael, convicto de que certas coisas entaladas asfixiam, como a estreiteza de um carro ao sol, mesmo que imediatamente se suplicasse por um triturador de provas. Teria usado um tom de censura? Não tinha a certeza.
– Eu sei, mas tinha as mãos cheias de creme – respondeu, prontamente, Élia. Creme. Ismael contabilizou: tinha acertado entre o rol de possibilidades e ainda se esquivara de um eventual tiro pela culatra. – Conta-me, que notícias trazes da selva de betão?
– Infelizmente – concluiu resignadamente – , as notícias não incluem a captura de nenhum caçador.
– Pode vir nas da tarde. Não desmoralizes.
Élia estava bem disposta, o que era para Ismael uma surpresa, dada a intensidade do abalo nocturno.
– Vou continuar sintonizado – proferiu, ainda que não soubesse bem o que lhe reservava a manhã. Talvez uma visita a Gustavo Salvo.
Élia riu-se: – Daqui a pouco é hora de almoço. Queres vir comer comigo?
Havia qualquer coisa fora do lugar. Não era capaz de identificá-la no mapa, mas não batia certo. Redobrou a atenção. O entusiasmo de Élia parecia legítimo, sem nervosismo na respiração, na pronunciação das palavras nem no tom de voz. Ainda assim, que entusiasmo era este depois de uma noite de cama com cadáver seguida por outra de tiro ao alvo? Ter-se-ia Élia auto-medicado?
– Já só tenho um trunfo na manga – disse. – Vou fazer figas para que dê resultado, senão terei de ir contra ordens explícitas, o que não me convém nada.
– Que críptico. Truques na manga e ordens explícitas. És um rebelde, meu querido.
O ruído de fundo. Havia música, isso tinha percebido logo. Qualquer coisa electrónica, suave, com tons ocidentalmente asiáticos. O que mais? Pessoas, vozes abafadas. A televisão? Uma loja?
– Pois sou – pressionou, pensando bem nas palavras a usar a seguir. – Ganhei uns dias de férias e sou pessoa de interesse em dois crimes. Tudo o que me apetece fazer pode pôr-me em maus lençóis.
– Não te preocupes, eu mudo os lençóis quando chegar a casa.
E pronto, o coelho estava fora da cartola.
– Onde é que estás?
Élia interrompeu-se, mas expirou de forma tão audível que Ismael teve de afastar o telemóvel do ouvido. Voltou a concentrar-se de seguida. Havia exasperação na respiração de Élia, isso era óbvio, mas não podia interromper a sua concentração. O que mais lhe dizia o ruído de fundo? Estaria alguém com ela? Estaria sob ameaça de arma? O tom de voz desmentia a apreensão, mas o silêncio levantava dúvidas.
Ismael repetiu para si, Onde é que estás?
– Estou na clínica – disse ela, finalmente, com um suspiro.
Ismael sentiu que os seus músculos se tinham comprimido ao ponto de provocar dor e procurou atrapalhadamente a alavanca na porta do carro que a faria abrir-se. Tinha de apear-se ou explodia.
– Prometeste que ficavas em casa – disse, tentando conter a irritação que regressava sem dificuldade.
– Liguei para avisar que ia faltar, mas já me tinham marcado agendamentos para a manhã. O meu brio profissional foi mais forte do que eu.
– Não sabes que corres perigo de vida?
– O meu brio profissional também é mais forte do que o medo.
– Do que o … – Ismael rolou os olhos e cerrou os punhos, evitando a custo agredir o volante, sob pena de provocar a buzina. – Mas custava-te … assim tanto … ficar em casa uma manhã?
– Não me posso dar ao luxo de recusar clientes, este negócio é sete cães a um osso.
– Estamos a falar da tua vida! Daquela coisa que só tens uma. Custa-te assim tanto ouvir a voz da razão?
– Queres dizer – A boa disposição extinguira-se-lhe do tom de voz – a tua?
– Com mil macacos penteados à escovinha, será que não entendes a gravidade da situação? Não és capaz de perceber que era para tua própria segurança? É assim tão difícil meter na cabeça que --
– Tarzan, acho que já gritaste tudo o que tinhas para gritar.
Antes que tivesse a oportunidade de encher os pulmões de ar e garantir que quem grita mais alto é quem ganha, a discussão foi decidida pelo som imaginário mas inconfundível da chamada a ser desligada. Ismael olhou para o ecrã do telemóvel, que confirmou a suspeita antes da retro-iluminação ir pelo mesmo caminho. Entretanto, a superfície do ecrã devolveu-lhe a reflexão da própria cara confusa. Abanou a cabeça, em descrédito total. Haveria algum colete suicida à venda em Lisboa e levar-lhe-iam assim tão a mal se o amarrasse em redor da cintura de vespa de Élia?
O tom de toque soou novamente e Ismael foi imediato a activar a chamada e levar o aparelho à bochecha, para tarde demais reparar que o remetente era Mãe e não Élia.
– Então, meu safado? Já não dizes nada há uns dias, que tal a nova namorada?