Então o Diabo disse, é preciso
ser-se Deus para gostar tanto de sangue.
O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago
Capítulo 1 – O Símbolo do Terror
Há muito tempo que não ria assim. Uma gargalhada sadia, forte, viva, sincera, vinda do fundo da alma através da propulsão de um par de pulmões plenos de satisfação.
Diabos, há muito que não ria, ponto final.
Os seus braços levantaram a cintura feminina e embalaram-na num rodopio que colocou os tornozelos dela à altura dos seus joelhos. Ela riu, alto, vendo e sentindo o cabelo espiralado cirandar em seu redor, cegando-a, refrescando-a quando a aragem lhe entrava por entre o labirinto de cabelos negros.
Permitindo-lhe pousar os pés no chão, rodeou os flancos da mulher com mãos trementes e acariciou-lhe as costas, abraçando-a carinhosamente.
– És a melhor coisa que me podia ter acontecido – disse, olhando-a directamente nos olhos.
– Beija-me – ordenou ela.
A noite acesa por lampiões públicos erguia-se acima deles, prédios a perder de vista conspirando por formar uma autêntica cidade, milhões de janelas escondendo vidas como estrelas longínquas, vigilantes, observando secretamente o casal que passeava sob a brisa suave daquela noite já senhora, alegre e radiante, rindo do calor um do outro que partilhavam no brilho de um olhar confiante.
Adiante, um viaduto. O céu abria-se a toda a volta, uma abóbada espacial onde o vento corria solto e soava como crianças num piquenique ao ar livre. De mãos dadas, o par corria em abandono, sem competir, preparando-se para passar por baixo, engolfar-se na escuridão, só a luz ao fundo do túnel indicando vida, acenando ao longe, amiga, venham para cá.
Lançaram-se pelo viaduto, pensando apenas em como era o caminho mais curto para a casa dele, a linha recta entre dois pontos, se o destino de ambos se situava no fim desse fio porquê circundá-lo, que ideia absurda.
Mas, enquanto corriam, encantados, dentro do túnel que ressoava cavernosamente a boa disposição de ambos em ecos metálicos, ululantes e tribais, Élia viu-se a correr sozinha. Parou, aturdida, e olhou para trás, para a figura imóvel que aparentemente se esquecera da presença dela. Chamou-o, duas vezes, antes de retroceder os passos que dera desde que perdera a sua atenção.
– Ismael – disse ela, baixinho, chamando-o ao ouvido, uma boca tocando-lhe ao de leve no pescoço.
Ismael estremeceu. A sua mão direita tocou rapidamente no cinto, tacteando algo que não estava lá. Entrelaçou nervosamente os dedos nos dela, os olhos vasculhando a escuridade à procura de algo a temer. Sentiu-se inquieta. Ele estava a assustá-la. E aquele gesto rumo ao cinto, como se buscasse a pistola de serviço...
– Ismael, o que foi?
Com a cabeça, ele apontou a parede e fez-lhe sinal para que não se agitasse. Élia fixou a parede em arco, onde alguém, com uma lata de spray, ao que parecia, pintara uma palavra em letras acutilantes, ao estilo que se tornara clássico com o movimento hip-hop, nos inícios da década de 1980, e cujas manifestações já era tão raro presenciar. Mistral, lia a pichagem. Sabia o que era, era o vento que acompanhava as monções, nos desertos indianos. Mas, para Ismael devia significar outra coisa. Deixou-se ficar quieta. Ele é que era o polícia.
Olhou para ele e o seu coração apertou. Sentiu medo. Pois Ismael, podia vê-lo bem, estava assustado.
– Ismael – forçou-se a sussurrar. – O que foi? O que se passa?
A réplica dele foi curta: – O que ouves?
Élia obrigou-se a tentar ouvir o que poderia estar a retraí-lo, mas tudo o que lhe ensurdecia os ouvidos era o bater do próprio coração. Esforçou-se mais.
– Não ouço nada – confessou, finalmente. – Ismael, o que ouves?
Ele estava ainda concentrado, hirto, como se esperasse uma súbita agressão vinda das sombras bruxuleantes.
– Nada. Não ouço nada. É isso que me intriga.
– Que dizes?
– Essa pintura. Foi feita para mim. Para eu a ver. Está fresca.
Élia assentiu, querendo que ele lhe explicasse melhor o que para ela não significava nada. Sim, o graffiti era fresco, ainda tinha aquele brilho húmido. Se bem que: – Spray não costuma secar em minutos?
– Sim – foi a resposta dele, ainda alerta. – Mas o sangue demora mais.
Élia inspirou uma golfada de ar, sentindo-se afogar em oxigénio. Aquele graffiti tinha sido feito com...?
– Mas o corpo não está aqui – continuou Ismael, rígido. – E isso não é comum nele. Devia estar aqui um cadáver esventrado, drenado do sangue para que ele pudesse deixar a sua marca.
Quem lhe dera ter consigo a sua pistola. Sentir-se-ia muito mais seguro. Desarmado e com Élia para proteger, seria muito menos eficiente. Estarem ali era demasiado perigoso. Tinham de sair dali, antes que ele regressasse com a catana de pintura e a paleta de tonalidades de escarlate.
Lentamente, com muita cautela, foram mantendo as costas para o graffiti e aproximando-se da saída do viaduto. Aquela noite tinha sido perfeita. O jantar saboroso, a companhia agradável. Ele, que começara cauteloso, dera por si irremediavelmente atraído. Mas, agora, era presenteado com o seu pior pesadelo, que julgava arrumado no armário, por trás das bisnagas e dos fulminantes. Para coroar a noite com o símbolo do terror. Ou de Mistral.
Qual era a diferença?
A alguns metros do final do túnel, pôs Élia atrás de si. Era melhor jogar pelo seguro. Ele alterara o método, o cadáver não estava onde devia, um ataque repentino e veloz como o vento não tinha ainda partido do nada. Mas mais truques podiam estar escondidos na manga. Coisas aprendidas na cadeia. Sabia Deus com que outro abutre. De pernas flectidas e passos largos, foi-se aproximando da luz da lua e de um mais do que provável combate com as trevas. As trevas afiadas e certeiras de Mistral.
Esticou o indicador como se transportasse uma arma. Talvez a obscuridade do túnel e o véu nocturno contribuíssem para a ilusão. Isso, pelo menos, equilibraria os pratos, tornando o outro mais cauteloso, menos confiante. A ideia de ser uma presa fácil mexia-lhe demasiado com o orgulho. Abdicou do gesto, porém, supondo que poderia predispor o oponente a um combate corpo-a-corpo, se tornasse evidente ser essa a sua intenção. Abriu e fechou os punhos, flectiu o pescoço e os ombros. Estava fisicamente apto para um confronto.
O arco de escuridão deslizou sobre carris silenciosos por cima de si, até parar nas suas costas. Ismael examinou, com uma percepção habituada a esmiuçar, o cenário em frente. O vento desceu ao seu encontro, agressivo, fustigando-o, abanando-o nos alicerces, mas aguentou-se, mudando de posição, mantendo a concentração. Como teria feito se alguém se tivesse jogado sobre ele. Mas os prédios que se aventuravam naquela vizinhança em semelhante horário denotavam indiferença, virando-lhe as costas e preocupando-se consigo e com os seus, sempre era distracção mais saudável do que olhar para aquele homem pequenino ao longe, com ar de quem urinaria nas calças caso um gato preto se lhe cruzasse no caminho.
Ismael ergueu a vista para além do viaduto, para a ponte que se elevava por cima do túnel que ele e Élia tinham atravessado. Esperou encontrar aí a figura de Mistral, um vulto espadaúdo com as abas da gabardina velejando na brisa gelada, um corvo plantado firmemente no ombro, uma longa faca denteada nas mãos. Mas Mistral não tinha um corvo. Nem uma gabardina. Nem uma longa faca denteada. Nem tampouco se encontrava lá em cima.
Não estava em lado nenhum onde pudesse ser visto.
Esticou a mão a Élia.
– Vem. Talvez eu esteja enganado. Julguei que... Pode não ser...
Élia veio até à sua mão e enrolou-se nele, abraçando-o, massajando-lhe os ombros e as costas enquanto o fazia.
– Não tem importância. Foi só um susto. Está tudo bem, agora?
Ismael não queria responder.
– Acho que sim. Talvez não seja nada. Vamos.
Élia beijou-o com força na boca e introduziu-lhe a língua até aos confins da sua elasticidade.
– Talvez possamos regressar ao estímulo anterior. Vou precisar de ajuda para parar de tremer.
O corpo dela contra o seu era prova inegável das suas palavras.
– Precisamos um do outro. Eu também estou abalado. Desarmado e contigo para proteger, não é como se eu pudesse correr muitos riscos.
– Muito obrigada – disse ela, desmentindo no seu tom de voz que ele a fizera sentir-se um empecilho.
– Não é isso. Não sei o que te dizer – agitou a cabeça, consciente da sua eterna dificuldade em expressar-se. – Tive medo de não ser capaz de derrotá-lo. De proteger-te. Mas ele está preso. E não vai sair do sistema por mais seis ou sete anos. Foi medo, é tudo. Tive medo, OK?
Élia sorriu-lhe, olhos brilhantes.
– Estás desculpado. Pela tua cara, não devia ser um tipo fácil de roer. Quem é ele? Quero dizer, quem esperavas que fosse?
– Mistral. Mas prefiro não falar nisso.
O trajecto até casa não trouxe mais motivos para preocupação. Conversaram um pouco, tentando reatar a alegria perdida, e o relativo sucesso diluiu lentamente a pressão sobre a qual tinham estado.
Chegaram ao prédio de Ismael. Pararam, enquanto ele se provia das chaves.
– De certeza que queres entrar?
– Que quer isso dizer?
Ele encarou a ponta dos sapatos, as mãos gesticulando o embaraço.
– O que quer que se passou no viaduto – disse ela –, afectou-te. Posso ver isso. Queres falar sobre o assunto?
Ismael abanou a cabeça.
– Tudo bem. Se precisas de um tempo para ti, eu posso apanhar um táxi. Sem problemas.
O queixo de Ismael desceu até pender sobre o peito, e lentamente as suas mãos apossaram-se das dela.
– Élia... Ali atrás, aquela pintura mexeu-me com a cabeça. Julguei que algo de muito grave se fosse passar, e tive receio, pelos dois. Mas não aconteceu nada. Se ainda quiseres, gostava que ficasses comigo. Não queria ser grosseiro nem descortês. Só pensei se não preferias dar a noite por encerrada, ir para casa, pôr os pés em água quente, comer bombons ou ir directa para a cama.
– Estou a uma subida de elevador longe de casa – disse ela, referindo-se obviamente ao apartamento dele. Ismael sorriu, mais confiantemente, e tocou-lhe nos lábios com os seus. Foi ela quem, na volta, lhos possuiu com ardor.
– Talvez todo aquele susto me tenha feito bem. Sinto-me cheia de vontade de – sorriu, de olhos misteriosos, nada mais deixando os seus lábios, tudo presente no seu espírito.
– Não há razão para esperar mais.
Subiram no elevador. Juntos. Abraçados. Beijando-se. Tocando-se. Querendo-se. Ismael começava a descontrair.
O sininho do elevador demonstrou que tinham chegado ao andar indicado e as portas abriam quinze segundos contados pelos dedos depois. Saíram para o corredor às escuras, procurando o interruptor da luz antes que as portas do elevador se fechassem e os remetessem ao atro. Nenhum ganhou o prémio. Na escuridão, tactearam a parede em busca do botão que parecia brincar com eles, fugindo-lhes das mãos sobre patas que não tinha.
A luz acendeu-se. Moveram-se para a porta.
O piano de David Goldblatt surgiu, sensual, melodioso. O acompanhamento de Domanico no baixo e de Wortman na bateria deu-lhe corpo, enchendo a sala iluminada por um abajur em cujo sofá Élia se deitara, encolhendo as pernas como um feto. Quando o trompete de Mark Isham tomou a dianteira aos outros instrumentos, completando a ambiência anos 1920, Ismael ajoelhou uma perna ao lado dela e estendeu-lhe um copo alto, onde bolhinhas salpicavam no topo de uma bebida transparente.
– O que estamos a ouvir?
– O meu coração – retorquiu ele.
Élia riu-se: – A música, tolinho.
– Romeo and Juliet.
– Não me digas... – Élia cerrou as pálpebras, entreabriu os lábios, embalou os ombros. – É bonito. Mas não é Prokofiev.
– Não. É Mark Isham. É de um filme.
– Gosto.
Beijaram-se.
Percorreram-se.
– Confesso que o sofá não é totalmente desagradável – sussurrou-lhe ela ao ouvido –, mas têm-me contado maravilhas sobre uma coisa chamada cama.
Ismael acenou. Tinha ouvido o mesmo. Num impulso, pôs-se de pé, sustendo-a nos seus braços como também ouvira dizer que Tarzan fizera a Jane. Ela ronronou, enlaçada nele, satisfeita com a demonstração de virilidade.
Em largas passadas, conduziu-a por um corredor às escuras – a única luminosidade provinha da sala, cujo candeeiro se esquecera (também, com que mão?) de apagar – até uma porta entreaberta. Passada a soleira, ficaram totalmente às escuras. Ismael fez uso das suas faculdades de memória visual, afinal de contas era o seu quarto, e conduziu a bela, que começava a pesar, para o lado esquerdo da cama. O lado mais próximo. Ao depositá-la sobre o edredão, sentiu que este fazia um som esponjoso, aquoso, como se os lençóis estivessem encharcados ou o seu leito se tivesse transformado numa cama de água. A interjeição de desagrado de Élia confundiu-se com a dele. Nervosamente, tacteou, desconcertado, o caminho até à porta, e acendeu a luz.
A visão de horror que as cortinas do teatro revelaram ao abrirem-se sobre o palco perfez uma imagem, no mínimo, McBethiana. A metamorfose operada na cama, a mesma que usara para dormir ainda na véspera, da qual se levantara às sete da manhã do presente dia, à qual estava habituado há vários anos e cujo colchão possuía um molde bastante fidedigno do seu corpo reclinado, a cama onde acabara de depositar Élia, era absolutamente inesperada, impensável e desumana. Ao invés da sugestionada cama de água, ideia até agradável no seu quê de romântico e lascivo, virara uma poça de sangue, um pântano cuja vegetação era vermelha e não verde, numa instalação figurativa do Estige que um decorador de interiores só seria capaz de recriar se tivesse alma de artista plástico e um estômago bem forte.
Durante um momento interminável, não se conseguiu mexer, aturdido com a imagem de Élia a esbracejar, aos gritos, a ser engolida pela cama como se por areia movediça de cor escarlate. Estava petrificado, tentando entender como tinha o final da sua noite de sonho sido virado do avesso e porque não era capaz de acordar daquele letargo.
Élia atingira sozinha o limiar da cama e tombara para o chão, soluçante. Ao fazê-lo, arrastou consigo os lençóis, que a envolveram como um manto no chão, antes que conseguisse ver-se livre deles, empurrando-os convulsamente. Em cima do leito, entretanto desprovido do manto ensanguentado, repousava o corpo de uma mulher. Num traço, era nova, magra, cabelo louro e tez clara. Tinha os olhos abertos, vítreos, vazios. Não era preciso ter o Curso de Medicina para garantir que estava morta.