Capítulo 6 – Imperial House
A escadaria, que conduzia por uma tortuosa e ensombrada espiral de degraus de mármore cambados e partidos e escalava paredes cicatrizadas pelo esmagador peso da idade e a ausência de obras, em nada era beneficiada pelos rostos daqueles que se adivinhavam por trás das portas manchadas, sulcados pelo sofrimento e encovados por um cancro profundo e indizível senão pelo olhar condenado que desviavam quando observados.
Eventualmente, chegou ao terceiro andar daquele prédio sem elevador e tocou à campainha. «Imperial House – Agência Imobiliária», lia-se pomposamente numa placa de latão brilhante, colada na porta, imediatamente por baixo do olho mágico. Um dístico assim destoava daquele lugar decadente. Mas, a própria porta era uma contradição às paredes que a enclaustravam, polida e envernizada, a luzir no meio do cinzento generalizado que cheirava a mofo e transpirava humidade.
Por fim, a porta foi aberta por um homem ainda pouco habituado às instalações da casa dos vinte, de camisa branca e gravata vermelha, sobre um par de calças de vinco pretas e sapatos de pala a condizer.
– Tem hora marcada – perguntou a boca por cima da gravata, enquanto Ismael passava para um átrio pintado de festiva cor salmão, em cuja parede frontal um cartaz o tentava com areias brancas, palmeiras e água transparente; e havia, aparentemente, um harém de oferta. Passaram para a sala de espera, onde Ismael optou por identificar-se formalmente, exibindo o cartão e o distintivo. O jovem adoptou uma postura mais hirta, acenou com a cabeça, ajustou o nó da gravata e dirigiu-se à consola telefónica da secretária de tampo de vidro temperado, levantando o auscultador e marcando um botão. Ismael apoderou-se do sofá mais confortável. O dia de folga estava a chegar ao fim do horário de expediente e ainda não tinha nada de concreto com que acalmar o espírito.
– Só um segundo – disse, pousando o auscultador. – A doutora está com um cliente, recebe-o de seguida.
Ismael assentiu e entreteve-se a avaliar, pelas capas, o conteúdo das revistas disponibilizadas na mesinha ao lado, antes de escolher uma para desfolhar distraidamente, interrogando-se brevemente como lhe ficaria no pulso um relógio vistoso, exibido no pulso de uma estrela de cinema.
Ainda não tinha encontrado a posição ideal para as costas, quando a preocupação pelo seu conforto foi interrompida pela abertura de uma porta invisível. Ergueu a vista, a orientar-se pelo som, e viu materializar-se um aprumado indivíduo de distinta barba grisalha e indumentária irrepreensível, a quem o jovem acompanhou à saída.
– Só um instante – indicou, no seu retorno, a Ismael e desapareceu pela mesma parede.
Ismael levantou-se e admirou a ilusão de óptica que uma moldura muito fina podia criar ao olhar incauto, fazendo eclipsar toda uma passagem. Há magia em todo o lado, pensou, pondo as mãos nos bolsos e vagueando pela sala. Ninguém diria que aquele prédio devoluto escondesse um escritório com classe e, afinal, encontrava-se num espaço que irradiava profissionalismo. Mas, como toda a magia se dissolve em ilusionismo, o ângulo onde agora se encontrava permitiu-lhe ver a maçaneta de espessura fina rodar e uma porta vulgaríssima revelar a gravata vermelha por cima da qual lhe foi indicado, com um gesto, que deveria segui-la.
Foi transportado para um gabinete mobilado com o mesmo bom gosto que a sala de espera, desta feita convergindo em madeiras escuras e couro negro. Contra as persianas corridas da janela, recortava-se uma elegante silhueta, num cintado conjunto de saia e casaco cinzento claro, nude pumps com peep toe e meias de lycra a assegurarem o impacto. O cabelo, esse, era um oceano de madeixas encaracoladas e revoltas, no meio do qual um rosto de olhos brilhantes garantia a manutenção do mistério, oculto na contra-luz de um efeito surpreendente.
Ismael questionava-se sobre ter encontrado a femme fatale da investigação, quando esta se encaminhou para ele, de mão estendida. Ao ser envolvida pela luz do candeeiro de mesa, as linhas do seu rosto, ainda que indesmentivelmente formosas, revelaram a maquilhagem que segurava muitas noites mal dormidas.
– Boa tarde – cumprimentou ela, numa voz ligeiramente cava, outra prova de cansaço. – Presumo que não procure casa nova...
Ismael reprimiu um gracejo sobre o momento não ser indicado para investimento imobiliário, mas o dia secara-lhe o humor: – Estou aqui por causa de Mistral.
Os olhos amendoados de Alessandra Pinheiro dilataram-se e o seu corpo vibrou como uma corda de contra-baixo.
– Ele ainda está preso, não está?
Ismael confirmou, sentindo-se estranhamente como um cavaleiro andante, a sossegar a donzela do seu medo de dragões. O corpo hirto dela relaxou, devagar, e um suspiro profundo esvaiu-se-lhe por entre os lábios entreabertos. Piscou os olhos e a fadiga tornou-se menos notória. Deu a volta à secretária, sentando-se com as costas apoiadas no encosto, e assinalou a Ismael para que a imitasse, na cadeira em frente.
– Gostava de saber o seu paradeiro de ontem à noite, entre as dez e a meia-noite – pediu Ismael.
Alessandra Pinheiro apoiou os cotovelos nos braços da cadeira, carregando uma sobrancelha.
– Sou suspeita de alguma coisa?
– Porque diz isso?
– Porque é polícia. Está aqui. Não veio à procura de casa nova.
– Do que poderia ser suspeita?
– O que é que acabei de dizer-lhe?
Ismael aguardou. Às vezes, uma primeira resposta defensiva era acompanhada de outra mais frontal. Não foi o caso.
– Encontrei o seu nome nos registos de presenças da Penitenciária dos Amores. Poderia dizer-me a natureza das visitas que fez a Mistral?
– A natureza?
– O que sabe sobre o homicídio da noite passada?
Alessandra Pinheiro inclinou a cabeça, incisivamente, e Ismael soube que a boa vontade dela estava no limite quando disse, com enfado:
– Qual homicídio da noite passada?
Ismael sorriu, disposto a mudar de táctica:
– Ontem à noite, ocorreu um homicídio que recorda a marca registada de Mistral. Partindo do princípio de que o próprio está atrás de grades, todas as possibilidades permanecem em aberto. Desconhecemos se há uma relação directa ou qual o seu grau de envolvimento. Sei que o visitou no início do seu encarceramento e que não regressou. Preciso de construir um perfil psicológico de Mistral, para uma mais precisa identificação de pistas. Se puder fornecer-me uma lista de associados, amigos, companheiros de festa, gente como ele, seria um contributo precioso. Alguém que esteja em liberdade e possa ter sido incumbido de um novo projecto ou que tenha decidido imitá-lo por deferência.
Alessandra Pinheiro respirou fundo, ergueu-se pausadamente e declarou, enquanto dava a volta à secretária:
– Preciso de um café. Venha comigo.
Quando fez biquinho com os lábios em redor da cerâmica, o vapor que se erguia da água quente com cafeína espalhou-se-lhe pelas feições e misturou-se-lhe em espirais pelos cabelos, ondas vivas de névoa negra. Ismael deu tempo à sua chávena de arrefecer, mas ela não.
– Toda a gente que se dava com Mistral era intoxicada pelo seu poder. Havia um pouco de tudo, desde desordeiros, que ele transformou em seguranças, a miúdos mimados com dinheiro e drogas, que viam nele uma qualquer espécie de profeta niilista e obedeciam a todo o tipo de ordens como se fosse uma festa. Suponho que, quando se está pedrado, aquilo parecesse divertido. – Fez uma pausa, antes de dizer: – Acho que foi por isso que me apaixonei por ele.
Alessandra Pinheiro olhou para a chávena vazia, mexeu o fundo com a colher, revolteando o açúcar não derretido, e pousou a loiça num canto da mesinha onde estava a máquina expresso. Ismael não se pronunciou.
– Afinal, eu era nova, queria experimentar e ele tinha o carisma para dirigir a banda. Irradiava uma intensidade que ninguém discutia, ninguém questionava. Nada era absurdo, arriscado ou perigoso. Não havia medo, era uma alucinação partilhada. Éramos uma alcateia predadora, uma força que se espalhava pelas paredes como uma enchurrada e saía pelas janelas enquanto o edifício desmoronava. Os nossos olhos brilhavam no escuro, o nosso bafo era fumo branco, éramos energia pura, que Mistral usava como um catalisador. Ele mantinha-nos unidos, na ordem. Tudo tinha um propósito. E eu estava lá no meio, um peão longe da sala de estratégia, atraída pelo cheiro do lobo, pela voz de comando que coordenava cada um dos nossos gestos. Mistral era assim. Quem não o seguisse, desaparecia. Pois, tenho de corrigir, havia medo, sim, mas dele. Só que era diluído na adoração, não parecia real.
– O que é que faziam? Nessas folias?
– Na maior parte das vezes eram coisas sem importância – Alessandra Pinheiro encolheu os ombros. – Percorrer trechos da 24 de Julho e da marginal de Cascais a alta velocidade, às vezes em carros roubados, partíamos os vidros a lojas que tinham alarme e, sem roubar nada, esperávamos a chegada da polícia, contando em voz alta o tempo que demoravam a chegar, bebíamos e drogávamo-nos até ninguém se aguentar de pé e contávamos o que tínhamos visto durante o estupor, mas também houve vezes... em que a coisa azedou. Emboscadas a casais ou pequenos grupos de minorias étnicas, apedrejamentos aos sem-abrigo que dormiam na rua...
Alessandra cerrou os olhos. Algo dentro dela se contorcia, subcutaneamente, algo negro que ela tentava manter sob controlo. Ou esquecido.
– Não gosto de me lembrar disso. Aliás, não é coisa de que me lembre com grande clareza. Fiz uma desintoxicação nos Eternos Amigos, arranjaram-me um emprego, voltei a estudar, aqui estou. Já comecei a fazer nome nesta imobiliária, espero que a nossa conversa...
– Quem era o maior seguidor de Mistral?
– Não me lembro deles pelos nomes. Já lá vão mais de quatro anos e eu nunca estava sóbria. Mesmo na altura, só os conhecia pelo nome próprio...
– O nome Gustavo Salvo diz-lhe alguma coisa?
Alessandra abanou a cabeça, acompanhando o gesto com um trejeito dos lábios.
– Hmm, hmm.
– Se o visse, reconhecê-lo-ia – insistiu Ismael. – Se fosse alguém do vosso grupo?
– Tudo o que guardo daquele tempo são imagens vagas, deturpadas. Não sei se os reconheceria se nos cruzássemos na rua. Porquê?
– É a minha próxima paragem. Foi a outra visita consistente dos primeiros tempos de encarceramento de Mistral. Porque é que o visitou, já depois de preso?
– Era como se ele me atraísse, uma espécie de flauta de Hamelin, mesmo da cadeia. Como se sussurrasse o meu nome por entre as grades da cela e esse chamamento percorresse a noite fria até mim. Foi por isso que procurei tratamento. Aquilo era uma espécie de paranóia, eu não podia viver sem ele. Depois passou-me. Hoje não seria capaz de ir visitá-lo.
– Hmm...
– O quê?
– Nada, estava a pensar.
Talvez a flauta de Mistral tivesse soado novamente, mas a outro membro do grupo, mais sugestivo e menos recuperado do encantamento.