Capítulo 4 – Jogging
A música vibrava nos headphones ao mesmo tempo que os ténis de corrida explodiam no asfalto, tentando ultrapassar a própria sombra, tendo apesar disso o discernimento de contornar as poças de água que iam surgindo no caminho, quanto mais tempo permanecessem brancos, melhor. Demasiado febril para voltar a dormir e admoestado a não proceder a diligências que pudessem custar-lhe o emprego, Ismael colocou a farda de jogging e disparou porta fora. Era verdade que há algumas semanas se fora esquecendo de praticar, mas ainda não tinham inventado melhor forma de arrefecer um cérebro efervescente do que com um extenuante combate entre a velocidade e a distância, à revelia dos próprios músculos.
De dentes cerrados e respiração controlada, percorreu ruas a perder de vista, sem saber onde estava, nem para onde ia, o sistema de radar que tratasse disso em segundo plano. Até lá, colocara o letreiro de fechado na porta dedicava-se ao balanço da loja. O chefe recusava a teoria de vendetta, estando Mistral na cadeia, o que era lógico, mas teria de ser contornado. O graffiti, o cadáver, um a chamar a atenção para o outro. Não havia muito que pudesse fazer até saber quem tinha passado a noite em sua casa, para estabelecer mais ligações. Teria sido uma vítima aleatória, uma coitada que passara à porta do seu prédio quando Mistral precisava de um bonifrate, ou a sua identidade teria alguma relevância? Só as impressões digitais trariam luz a esse ponto.
Teria de questionar Simões e Pedralva quando regressassem do Alentejo, ainda que não percebesse o que lá tinham ido fazer. Um posto da GNR reconhecera a vítima. Não podiam ter mandado simplesmente o nome para cima? Bem, ao menos, que obtivessem uma morada e aproveitassem para questionar familiares, amigos e colegas dela. Quantos mais, melhor, e um namorado era sempre útil.
Custou-lhe a perceber o que o seu cérebro estava a querer dizer-lhe, mas não havia como negar as migalhas de informação que ia acumulando dos mais pequenos reflexos no caminho e que compunham, de todas as coisas, um automóvel. Um Ford Escort preto. Um Cosworth, daqueles com respiradouros no capot e curioso aileron de fábrica, que devia ter alguma utilidade, já que o veículo era famoso por participar em rallies. Só se apercebia dele quando desfazia curvas e via o pisca indicar que ia para o mesmo lado. OK, Mistral. Bem-vindo à corrida.
A música ajudava à intensidade e Ismael serviu-se da vibração para coordenar a passada, vencendo a distância com incremento visível e velocidade. Como tinha uma longa recta pela frente, manteve um ritmo compassado, mas o nervosismo lutava por tomar as rédeas. Já estava a correr há algum tempo, pelo que podia concluir que era apenas seguido e não alvo para abate. Olhou em redor, sem mover a cabeça para os lados. Era uma área movimentada da cidade, com duas faixas de rodagem, prédios altos, pessoas a entrarem e a saírem das lojas e árvores a pontuarem os passeios. Mistral podia estar apenas à espera de um sítio sem testemunhas ou a mantê-lo sobre vigilância, a ver como assimilara as prendas da véspera.
Uma curva, ao fundo. Teria de saltar um gradeamento e meter-se pelo recreio de um liceu, mas estava certo de que o carro faria os impossíveis por dar a volta e vir procurá-lo à porta do liceu. Tinha que ser rápido para –
Salto!
As grades tremeram quando todo o corpo de um adulto em fato de treino se ergueu a caminho do sol, recortando-se do astro numa imagem de força projectada de encomenda para um anúncio televisivo a artigos desportivos, antes de dobrar as pernas para a esquerda e alçar-se para o relvado do outro lado, aterrando com as pernas flectidas, tornozelos preparados, mãos abertas tocando a humidade com as pontas dos dedos, o rabo impulsionando o tronco para a frente, a corrida recomeçando então, novas barreiras à frente, obstáculos a ultrapassar interceptados. Um casal de estudantes namorava onde ele devia correr. Não abrandou, não avisou, não contornou. Qual touro numa arena, precipitou-se sobre eles, cujo impulso fez fugir a tempo. Ismael, duas fendas semicerradas todo o campo de visão, para não se dispersar, identificou e focou, ao fundo, os portões da escola. Os alunos gritavam aleatoriamente, uns vivas e outros cuidado. Ismael não perdeu tempo com eles, concentrado em que cada passada comesse mais campo do que a anterior, atento apenas a que ninguém se lhe cruzasse à frente e tirasse o ímpeto. Os últimos metros de terreno até ao portão eram percorridos por baixo de um arco, salas de aula por cima. Assim que se viu a coberto, obrigou as solas a travarem e reduziu a velocidade com algumas passadas irregulares, com incidência para os lados, um pouco como um defesa a controlar o avanço de um goleador, e deu uma cambalhota sobre si mesmo quando achou que podia fazê-lo em segurança. Agachado, por trás da metade fechada do portão, procedeu ao rápido reconhecimento da rua. O Cosworth dobrara a esquina, como previsto, e procurava-o agora à frente do liceu.
Tirou os headfones dos ouvidos e caminhou de cócoras, qualquer semelhança com a locomoção de um primata pura coincidência, e ajoelhou-se por trás de um contentor do lixo. Tinha de agir depressa, porque era inevitável que alguns estudantes viessem espreitar ao portão e isso faria incidir sobre a sua localização mais atenção do que o indispensável.
Ainda de bruços, estudou o Cosworth através de um intricado sistema de emparelhamento de espelhos retrovisores dos carros circunstantes. O veículo deslizava ao ralenti, duas cabeças em sua demanda. Tanto quanto era capaz de discernir, não havia passageiros no assento de trás. Era impossível dizer se algum deles era Mistral.
Primeiro, o oco da sua mão fechada enroscou-se à volta de uma pedra feita por medida. De seguida, esticou o corpo ao comprido, quase na posição típica para fazer flexões, mas com um dos joelhos dobrado; firmou bem os calcanhares no solo e empinou o rabo. A pose era, afinal, a de preparação para um sprint. Algo que, pelo demonstrado até então nessa manhã solarenga, era uma das suas habilidades. No momento em que a contagem decrescente tocou o zero, o seu corpo irrompeu como o de um felino.
Ao ver inverter-se a ordem do jogo, o Cosworth travou e os seus tripulantes, como que subitamente electrificados, moveram-se confusamente no compartimento fechado. O passageiro levou, precipitadamente, as mãos ao interior do casaco. Tinha uma máquina fotográfica esquecida no colo. O condutor, alarmado, fez o Cosworth rugir para a frente, aos tropeções, e a existência de outros veículos à frente fê-lo fustigar a buzina.
Ismael chegou junto do carro, mas não conseguiu agarrar o puxador da porta, consoante a segunda era finalmente engatada pelo condutor e o pára-choques saltava para a frente, devorando a rua. Ainda bateu com o punho na janela lateral, mas em vão. A pedra que empunhava era o único recurso ao seu dispor e fê-la ganhar vida. Inclinou o tronco para trás, ao mesmo tempo que flectiu o braço por todo o espectro celeste, e o resto foi mais uma prova olímpica. O vidro traseiro do Ford vergou para dentro, numa resistente teia de aranha. A vítima ziguezagueou entre as duas faixas, mas ganhou velocidade e, como um foguetão, foi-se tornando cada vez mais pequeno e distante.
Ismael perdeu o equilíbrio e as forças. Deixou-se tombar sobre a bagageira de um carro estacionado. A respiração corria-lhe ardente, em estertores descontrolados, os pulmões desenfreados na sua cavalgada dentro da cerca constituída pelas costelas, lutando por despedaçar o esterno e pular para fora, qual galgo, e continuar a perseguição àqueles que lhe tinham, por um triz, escapado.