Capítulo 2 – Repercussões
Ismael estacionou o carro de bico, à porta do prédio de Élia.
– Chegámos – disse, em voz baixa, contrita, tocando-lhe ao de leve no braço.
Élia, que nada dissera durante a viagem, envolta no roupão que ele lhe emprestara, retraiu-se. Ismael retirou rapidamente a mão para o volante. Ela cerrou os olhos durante um longo instante, antes de abri-los de novo. Voltou-os, acuados, para Ismael. Na consistência desse olhar, lia-se uma forte carga de descrença protectora.
– Aquilo... aconteceu mesmo?
– Chegámos – repetiu ele, ao cabo de um silêncio. – Queres que suba contigo?
A mensagem pareceu levar anos a chegar até ela. Finalmente, abanou a cabeça e fez menção de abrir a porta. – Tu tens uma investigação para fazer e eu estou a precisar de dormir. Amanhã é dia de trabalho.
– Fica em casa. Eu arranjo um atestado a dizer que foste à esquadra ou tiveste de comparecer em juízo, como testemunha, qualquer coisa. Não te preocupes com isso. Não vás. Eu venho visitar-te...
Élia abanou a cabeça.
– Tenho de me manter ocupada, pensar noutras coisas. Nunca tinha visto um... uma...
Soluçou, arrepiada, e não completou a frase. Apeou-se com inesperada urgência, apenas para pousar as costas contra a porta que acabara de fechar. Ismael saiu pelo lado do condutor e deu a volta ao carro. Parou à frente dela, sem saber o passo seguinte. Élia quedou-se imóvel, repousando o queixo no colo, sem levantar a vista para ele, e voltou-se em seguida para a porta do prédio, cujas chaves fez aparecer da carteira que conservava consigo.
Ismael, impotente para impedi-la, sem palavras de explicação ou conforto, ficou a vê-la entrar, incapaz de sair do metro quadrado em que fora plantado, e decidiu-se finalmente a voltar para dentro do carro quando ela, à espera do elevador, lhe veio fazer um gesto para que fosse embora.
Quando as portas do elevador se abriram no átrio, Élia estava aninhada no chão frio e de luzes apagadas, a soluçar convulsivamente.
No carro, Ismael não estava em melhores condições. Bateu no volante, irritado, revoltado, confuso, preso numa rede que não só lhe tolhia os movimentos, como o raciocínio. Repetiu a dose e, não satisfeito, repetiu a repetição. Desta vez, a buzina reclamou, fazendo-o saltar. Levou as mãos ao rosto e esfregou-o. Lágrimas, inesperadas, escorregaram-lhe, em romaria, pelas faces, marcando-o como chagas. Porquê agora? Estava tudo tão bem, tudo no lugar. Há quanto tempo não tinha um percalço, no trabalho? Há quanto tempo não sentia um estímulo… feminino... Porquê agora?!
Sem ter parado de tremer, Ismael dirigiu a sua atenção para a entrada do prédio de Élia. Não deveria ficar ali? A protegê-la? A guardá-la? Para o caso dele vir atacá-la?
Esmagando um queixume entre os dentes cerrados, ligou a ignição e rodou violentamente o volante, como se quebrasse um pescoço, e arrancou sob a chinfrineira dos pneus e do motor. Havia tanto a fazer, antes que Mistral desse o próximo passo.
Saiu do carro, sem ter a preocupação de estacioná-lo. Um agente da PSP veio ao seu encontro, reconhecendo-o.
– Que aconteceu lá em cima?
Ismael mergulhou por entre polícias e paramédicos, os primeiros a servirem de cordão para manter os curiosos à margem e os segundos à espera de autorização para a remoção do cadáver, na ambulância que dava à noite uma aura psicadélica. Subiu de elevador, recordando a utilização feita pouco antes, tão diferente, com Élia. Em simultâneo, era descido, pelo outro elevador, o corpo envolto num lençol branco.
Com tanta gente a entrar e a sair do apartamento, Ismael nem tirou as chaves do bolso, mas não conseguiu evitar o pensamento de que talvez não tivesse sido má ideia trancar o armário das pratas. Um sentinela fardado cumprimentou-o, tocando na ponta do boné para o efeito, e Ismael fez o mesmo sem boné, torcendo o nariz ao ver o soalho da entrada coberto de giz.
– Chefe – chamou, assinalando a sua chegada.
– Ismael, já estamos em cima de tudo – veio ter com ele o Inspector-chefe, afastando o telemóvel da orelha e acenando-lhe para que se acercasse. – Recolhemos as impressões digitais da vítima e algumas do sangue mais esparso, que entretanto secou, e por toda a casa. Parece que há algumas parciais em estado razoável. Já foram para o laboratório. Com alguma sorte, teremos as do homicida. De qualquer modo, estamos à espera da identificação da rapariga. – Abriu um bloco de notas que trazia preso ao cinto das calças, com uma das argolas segura no dente da fivela, e consultou-o. – Tenho, obviamente, algumas dúvidas. Pelo que disseste, não a conhecias, mas a porta da rua não foi forçada. Antes de ler o teu relatório, que quero na minha secretária logo de manhãzinha, que podes dizer-nos para acelerarmos o processo?
– Investigaram o viaduto?
– Qual viaduto?
– Não lhe transmitiram ...?
– Qual viaduto? – O Inspector-chefe esbracejou, rodando sobre si mesmo para abarcar todos os presentes com a sua indignação. A quem não estivesse dentro do contexto, pareceria que mostrava garbosamente o casaco de cabedal novo. Inconsciente desta possível interpretação, voltou-se novamente para Ismael. – Ninguém disse nada sobre um segundo local, só que havia um cadáver na tua cama e que foste levar a namorada a casa.
Os pêlos dos braços de Ismael eriçaram-se. Namorada. Seria essa a designação correcta?
– Lembra-se do caso Mistral? – perguntou Ismael.
– Era aquele tipo que fazia graffitis com o sangue das vítimas?
Ismael acenou com a cabeça. – Fui eu que o meti dentro. Na altura, jurou vingança...
– Não o fazem todos? – desdramatizou o Inspector-chefe, num encolher os ombros.
– No viaduto, a caminho daqui, deparei com a marca registada dele, um graffiti a dizer Mistral. Pode ser o início de uma vingança...
– Mas ele não está engavetado? Não teve uma pena pesada?
Ismael confirmou-o, mas as mãos vazias viradas para cima mimavam que era a única pista que tinha.
O Inspector-chefe chegou o telemóvel ao ouvido:
– Quero a pasta do caso Mistral na minha secretária. Vejam o número no computador, o processo está no Arquivo. É de há dois anos ou isso.
– Quatro – corrigiu Ismael.
– Quatro anos – trocou. – Quero uma actualização completa. Saber o estado da liberdade condicional, de saúde, tudo. Houve algum reporte de fugas da prisão, esta noite? Não? Saibam em qual ele está e acordem os directores. – Desligou o telemóvel e berrou: – Onde estão os CSIs? Preciso que a equipa vá a um segundo local, relacionado com este caso. Tirem amostras e fotografias. Ismael, onde fica o viaduto?
Um dos lofoscopistas da Polícia Técnica acorreu ao chamado.
– Ismael, vai com eles. Isto aqui ainda é capaz de demorar. Assegurem-se de que garantem a cadeia de custódia. Recolham todos os vestígios e indícios, este caso tem prioridade, porque se meteram com um dos nossos. Tu já lá estiveste, tocaste em alguma coisa? – O Inspector-chefe esticou as costas, com as mãos nos rins. – Bom, vou voltar para a cama.
– Chegámos – disse, em voz baixa, contrita, tocando-lhe ao de leve no braço.
Élia, que nada dissera durante a viagem, envolta no roupão que ele lhe emprestara, retraiu-se. Ismael retirou rapidamente a mão para o volante. Ela cerrou os olhos durante um longo instante, antes de abri-los de novo. Voltou-os, acuados, para Ismael. Na consistência desse olhar, lia-se uma forte carga de descrença protectora.
– Aquilo... aconteceu mesmo?
– Chegámos – repetiu ele, ao cabo de um silêncio. – Queres que suba contigo?
A mensagem pareceu levar anos a chegar até ela. Finalmente, abanou a cabeça e fez menção de abrir a porta. – Tu tens uma investigação para fazer e eu estou a precisar de dormir. Amanhã é dia de trabalho.
– Fica em casa. Eu arranjo um atestado a dizer que foste à esquadra ou tiveste de comparecer em juízo, como testemunha, qualquer coisa. Não te preocupes com isso. Não vás. Eu venho visitar-te...
Élia abanou a cabeça.
– Tenho de me manter ocupada, pensar noutras coisas. Nunca tinha visto um... uma...
Soluçou, arrepiada, e não completou a frase. Apeou-se com inesperada urgência, apenas para pousar as costas contra a porta que acabara de fechar. Ismael saiu pelo lado do condutor e deu a volta ao carro. Parou à frente dela, sem saber o passo seguinte. Élia quedou-se imóvel, repousando o queixo no colo, sem levantar a vista para ele, e voltou-se em seguida para a porta do prédio, cujas chaves fez aparecer da carteira que conservava consigo.
Ismael, impotente para impedi-la, sem palavras de explicação ou conforto, ficou a vê-la entrar, incapaz de sair do metro quadrado em que fora plantado, e decidiu-se finalmente a voltar para dentro do carro quando ela, à espera do elevador, lhe veio fazer um gesto para que fosse embora.
Quando as portas do elevador se abriram no átrio, Élia estava aninhada no chão frio e de luzes apagadas, a soluçar convulsivamente.
No carro, Ismael não estava em melhores condições. Bateu no volante, irritado, revoltado, confuso, preso numa rede que não só lhe tolhia os movimentos, como o raciocínio. Repetiu a dose e, não satisfeito, repetiu a repetição. Desta vez, a buzina reclamou, fazendo-o saltar. Levou as mãos ao rosto e esfregou-o. Lágrimas, inesperadas, escorregaram-lhe, em romaria, pelas faces, marcando-o como chagas. Porquê agora? Estava tudo tão bem, tudo no lugar. Há quanto tempo não tinha um percalço, no trabalho? Há quanto tempo não sentia um estímulo… feminino... Porquê agora?!
Sem ter parado de tremer, Ismael dirigiu a sua atenção para a entrada do prédio de Élia. Não deveria ficar ali? A protegê-la? A guardá-la? Para o caso dele vir atacá-la?
Esmagando um queixume entre os dentes cerrados, ligou a ignição e rodou violentamente o volante, como se quebrasse um pescoço, e arrancou sob a chinfrineira dos pneus e do motor. Havia tanto a fazer, antes que Mistral desse o próximo passo.
Saiu do carro, sem ter a preocupação de estacioná-lo. Um agente da PSP veio ao seu encontro, reconhecendo-o.
– Que aconteceu lá em cima?
Ismael mergulhou por entre polícias e paramédicos, os primeiros a servirem de cordão para manter os curiosos à margem e os segundos à espera de autorização para a remoção do cadáver, na ambulância que dava à noite uma aura psicadélica. Subiu de elevador, recordando a utilização feita pouco antes, tão diferente, com Élia. Em simultâneo, era descido, pelo outro elevador, o corpo envolto num lençol branco.
Com tanta gente a entrar e a sair do apartamento, Ismael nem tirou as chaves do bolso, mas não conseguiu evitar o pensamento de que talvez não tivesse sido má ideia trancar o armário das pratas. Um sentinela fardado cumprimentou-o, tocando na ponta do boné para o efeito, e Ismael fez o mesmo sem boné, torcendo o nariz ao ver o soalho da entrada coberto de giz.
– Chefe – chamou, assinalando a sua chegada.
– Ismael, já estamos em cima de tudo – veio ter com ele o Inspector-chefe, afastando o telemóvel da orelha e acenando-lhe para que se acercasse. – Recolhemos as impressões digitais da vítima e algumas do sangue mais esparso, que entretanto secou, e por toda a casa. Parece que há algumas parciais em estado razoável. Já foram para o laboratório. Com alguma sorte, teremos as do homicida. De qualquer modo, estamos à espera da identificação da rapariga. – Abriu um bloco de notas que trazia preso ao cinto das calças, com uma das argolas segura no dente da fivela, e consultou-o. – Tenho, obviamente, algumas dúvidas. Pelo que disseste, não a conhecias, mas a porta da rua não foi forçada. Antes de ler o teu relatório, que quero na minha secretária logo de manhãzinha, que podes dizer-nos para acelerarmos o processo?
– Investigaram o viaduto?
– Qual viaduto?
– Não lhe transmitiram ...?
– Qual viaduto? – O Inspector-chefe esbracejou, rodando sobre si mesmo para abarcar todos os presentes com a sua indignação. A quem não estivesse dentro do contexto, pareceria que mostrava garbosamente o casaco de cabedal novo. Inconsciente desta possível interpretação, voltou-se novamente para Ismael. – Ninguém disse nada sobre um segundo local, só que havia um cadáver na tua cama e que foste levar a namorada a casa.
Os pêlos dos braços de Ismael eriçaram-se. Namorada. Seria essa a designação correcta?
– Lembra-se do caso Mistral? – perguntou Ismael.
– Era aquele tipo que fazia graffitis com o sangue das vítimas?
Ismael acenou com a cabeça. – Fui eu que o meti dentro. Na altura, jurou vingança...
– Não o fazem todos? – desdramatizou o Inspector-chefe, num encolher os ombros.
– No viaduto, a caminho daqui, deparei com a marca registada dele, um graffiti a dizer Mistral. Pode ser o início de uma vingança...
– Mas ele não está engavetado? Não teve uma pena pesada?
Ismael confirmou-o, mas as mãos vazias viradas para cima mimavam que era a única pista que tinha.
O Inspector-chefe chegou o telemóvel ao ouvido:
– Quero a pasta do caso Mistral na minha secretária. Vejam o número no computador, o processo está no Arquivo. É de há dois anos ou isso.
– Quatro – corrigiu Ismael.
– Quatro anos – trocou. – Quero uma actualização completa. Saber o estado da liberdade condicional, de saúde, tudo. Houve algum reporte de fugas da prisão, esta noite? Não? Saibam em qual ele está e acordem os directores. – Desligou o telemóvel e berrou: – Onde estão os CSIs? Preciso que a equipa vá a um segundo local, relacionado com este caso. Tirem amostras e fotografias. Ismael, onde fica o viaduto?
Um dos lofoscopistas da Polícia Técnica acorreu ao chamado.
– Ismael, vai com eles. Isto aqui ainda é capaz de demorar. Assegurem-se de que garantem a cadeia de custódia. Recolham todos os vestígios e indícios, este caso tem prioridade, porque se meteram com um dos nossos. Tu já lá estiveste, tocaste em alguma coisa? – O Inspector-chefe esticou as costas, com as mãos nos rins. – Bom, vou voltar para a cama.