Capítulo 10 – Enlevo
Antes mesmo de abrir os olhos, já os lábios de Ismael se encaracolavam num sorriso. Os eventos da noite estavam num rebuliço maior do que as suas roupas espalhadas pelo chão, mas recusou a sugestão de organizá-los, abanando a cabeça mentalmente e contra a almofada. Haveria muito tempo para montar o puzzle. Não se sentia preparado, o que quer que isso significasse, a felicidade era coisa que metia medo, fizesse isso ou não sentido, fazia.
Apressada pelo contínuo bater dos ponteiros do destino, a alvorada já não se preocupava em agir sub-repticiamente, debatendo-se por passar-lhe um fio de luz por entre as pálpebras cerradas. Rebelou-se quanto tempo foi capaz, mas rendeu-se com um queixume.
Começou por fazer o reconhecimento do tecto, prendendo a respiração para identificar, sem se mexer, se estava acompanhado. A criarem uma barreira de dificuldades, chegavam, através da janela fechada, não só os primeiros sons do trânsito, como o do vento a espremer as nuvens contra a vidraça.
Esforçou-se por bloquear os ruídos exteriores e ignorar que não se precavera, de véspera, contra alterações atmosféricas que incluíssem a aparente queda de meteoritos. Não obstante catalogar e expulsar, um a um, os componentes da distorção, outra coisa era transpor o da estática interna, e os restantes voltavam a cada distracção.
Na parede em frente, o céu brincava às sombras chinesas, projectando uma réplica do que se passava lá fora, boletim meteorológico pré-histórico, de previsão breve mas precisão óbvia.
Antes de procurar Élia com a mão ou com a vista, aproveitou aquela sensação de electricidade mágica para imaginar que flutuava para fora do próprio corpo e pairava no ar, entre a parede que simulava a chuva e a janela que a impedia de entrar e, suspenso, olhou em redor do quarto, pronto a reportar o que estava fora de alcance. Chegavam até si os contornos da imagem perfeita da sensualidade em repouso, os ombros descobertos na extremidade das clavículas desenvoltas, o vértice do cone mamário a insinuar-se sob a linha de dobra dos cobertores, os tentáculos de cabelo revolto a assegurarem a docilidade do travesseiro e a respiração, que do peito lhe chegava aos lábios entreabertos, aprisionava o sussurro do seu nome num beijo sufocado. Incapaz de esperar mais, virou o rosto e encontrou-a, deitada de barriga para baixo, a observar a fonte do reflexo na parede.
Voltou-se de lado, de frente para ela, e esticou-se para beijar-lhe o ombro mais próximo:
– Bom dia.
Ela inclinou-se para ele, afagando-lhe o cocuruto com o queixo enquanto ele lhe beijava o ombro.
– Espero que tenhas trazido galochas.
– Não – resmungou. – E o carro ficou na esquina…
Fitaram, solenes, o dilúvio.
– A culpa é minha – disse ela, enfim. – Mandei chover em cima de uma pessoa, mas como não sabia onde ela estava, estipulei que chovesse em todo o lado, até acertar-lhe.
Ismael espreitou o perfil da interlocutora, com uma sobrancelha erguida, e tentou interpretar-lhe as palavras:
– Em mim?
– Não – disse ela, sorrindo e abanando a cabeça. – Achas? Dava-me cabo dos móveis.
– Estou, é do sol? – Ismael, tentando entrar na brincadeira, simulou uma chamada telefónica com a mão.
– É a secretária pessoal – retorquiu ela, voltando-se para Ismael. – Pode dizer.
– Sabe quando ele volta?
Élia fez uma careta.
– Acho que hoje está de baixa …
Um suspiro e a expressão tornou-se-lhe indistinta, como se todo o rosto se concentrasse no olhar.
– Está tudo bem? – perguntou ele, para evitar o formigueiro de dúvida que o escrutínio lhe provocava, sorrindo para que o imitasse.
Finalmente, deitando a cabeça na almofada, Élia disse:
– As mulheres gostam desses pequenos gestos, sabes?
Ismael aguardou, o sorriso a equilibrar-se, já tenuemente, nos alicerces. A que se referiria? Ao recente gracejo ou ao facto de, horas antes, ter avançado como um aríete prédio acima, cavaleiro andante de armadura amolgada mas coragem e coração atados no mesmo desespero, para salvá-la de um dragão que, não obstante o incandescente bafo ou as ensurdecedoras asas, nem um olho abrira nem da gruta saíra? Ou estava, simplesmente, satisfeita por ele não ressonar?
– Que gestos? – viu-se obrigado a perguntar, quando ela não interrompeu a pausa.
– Escreveres o meu nome no vidro do resguardo do duche, por exemplo.
– Julguei que o tivesse apagado – respondeu, atrapalhado.
– Tentaste.
Foi aqui que Élia sorriu e Ismael relaxou. Aparentemente, passara no teste. Ela soergueu-se e veio para cima dele, beijando-o. Por um milésimo de segundo, questionou-se sobre a eventual toxicidade do seu hálito matutino, mas Élia não pareceu incomodada.
– Fica-te bem, a barba por fazer. Tens um sorriso bonito.
Forças invisíveis repuxaram-lhe as bochechas até a dentadura não ter onde esconder-se, deleitado, a rodar o calcanhar para fora, ocasião em que tudo se transformou numa confluência de estranhas manifestações e terminou num bocejo que o obrigou a esticar-se, até tocar nas paredes opostas com as pontas dos dedos, ou julgar-se assim comprido.
– Dormiste bem? – perguntou Élia.
– Muito bem – respondeu – e tu?
Élia recolocou a máscara e, no extremo de uma pausa propositadamente longa, inquiriu:
– O que é que esperas de nós?
Ismael sentiu-se crispar, os lençóis transformados em areia movediça. Tentou impedir a retracção do sorriso, mas era tarde demais. Ligou apressadamente o computador mental e atirou carvão para a fornalha, para alimentá-lo. Um curto-circuito sugeriu-lhe Sou o James Bond e tu és o meu sabor da semana, mas teve discernimento suficiente para reter a entrega. Ainda era muito cedo para esse tipo de humor. Precisava de mais tempo.
– Julgava que me ias perguntar o que queria para o pequeno-almoço – respondeu.
– Tu achas que eu estou a brincar – concluiu ela, fornecendo no seu tom de voz elementos suficientes em sentido contrário.
– Pronto, vou mesmo ser interrogado em jejum. Não sei, companheirismo, alguém com quem rir, andar de mãos dadas, que me aqueça os pés à noite. Alguém que faça com que não me sinta sozinho.
– Hmmm … És um lamechas. Gostas de passeios descalços na praia, ao pôr-do-sol?
Desconfortável, Ismael soergueu-se, encolhendo, como defesa involuntária, os ombros. Um lugar-comum define-se pela sua propensão de universalidade. – E tu, o que esperas de uma relação?
– Alguém com quem partilhar as despesas – disse Élia, pondo-se de pé num salto e saindo do quarto, rindo e levando a sua nudez consigo. – Vou tomar banho e tu podes ir tratar do pequeno-almoço.
Uma chave rodou na fechadura e Ismael percebeu que estava dispensado dos seus préstimos de lavador de costas, antes mesmo de oferecê-los. Coleccionou a roupa do chão e dirigiu-se para a cozinha de camisa aberta e calças a abotoar, o cinto a dar-lhe a volta ao pescoço como se fosse uma gravata e a presunção de que um sapato estaria debaixo da cama, nunca faltava um cliché, nem quando era escusado.
Apesar de praticamente todas as provas de que tinham jantado naquele espaço terem sido escondidas no interior da máquina de lavar loiça, um detective do seu calibre identificava facilmente a garrafa de vinho tinto abandonada ao canto da mesa e as migalhas ocultas por baixo. Algumas das gavetas tinham sido abertas para reunir os ingredientes do repasto, pelo que sabia exactamente onde estavam as caixas de cereais e as malgas de sopa. De uma gaveta por baixo da bancada saíram duas colheres e do frigorífico o pacote de leite. Não reconheceu o modelo da máquina de café e, como cada uma tem as suas peculiaridades, achou preferível deixar a Élia a missão de transformar água limpa em água suja. Dispôs a embalagem de café ao lado da máquina e suspirou.
Enquanto isso, a água deixou de correr na casa de banho, mas Élia não se apeou. Após uma mirada em redor da cozinha, para concluir que já tinha feito o que podia, aproximou a orelha da porta que exalava vapor.
– Tudo bem aí dentro?
Sossegado pelo Ahã que atravessou a madeira, Ismael retornou à cozinha e espreitou pela janela. A chuva continuava a suicidar-se em força. Pensou na pergunta de Élia. O que esperava ele de uma relação? Fez uma careta ao reflexo que o observava a observar a chuva e voltou a atenção para a máquina de café. Parecia uma pergunta fácil, mas não era. Primeiro, pela sua natureza solitária. Não via o convívio permanente como uma necessidade. Parafraseando Sartre, sempre se considerara uma excelente companhia e, citando-o, o Inferno são os outros. Os botões eram simples, ligar, café curto, café cheio e desligar. Não custava tentar. Encontrou a abertura do reservatório de água e partiu em busca de um copo.
Companheirismo. Fora o que respondera. Há quanto tempo atrás teria dito amor? Estaria a ficar velho e descrente, fechando a porta ao sentimento supremo por não acreditar que este entrasse, mesmo que a abrisse, espalhasse convites pela vizinhança e dispusesse setas de néon num círculo em redor? Passou, primeiro, o copo por água, esvaziando-o, e transportou a segunda toma para o interior da máquina. Utilizaria Élia água da torneira ou teria um garrafão para o efeito, armazenado algures?
Não estava a ser cínico, era apenas uma questão de não pôr o carro à frente dos bois. Quando era novo, costumava dizer que tinha tanto medo que lhe dissessem que sim como de lhe dizerem que não. Queria, com isso, aludir a uma certa rotina adquirida, horários funcionais de uma agenda ditada pela experiência e pelos gostos pessoais. Para fazê-lo sair da toca, só uma pessoa muito especial porque, claro, o seu quotidiano iria sofrer um vendaval. Agora, já não pensava assim, privilegiava a aventura a dois, sem baixar o grau de exigência, mas transferindo-o para uma segunda fase. Na primeira, deixava-se permeabilizar pela frescura de um sorriso, pelo calor de uma gargalhada, questões de empatia que aderem à pele, sensações que transformam o homem num glutão, saciado de presente mas ávido de futuro.
Ouviu a porta da casa de banho abrir-se e os passos apressados de Élia conduzirem-na ao quarto. De certeza que iria envolta numa toalha, mas ainda assim valia a pena espreitar, se ao menos o seu pescoço fosse rápido o bastante, não foi. Em alternativa, pesou a embalagem de café em cima de uma mão aberta, conservando apenas ar, obviamente mais leve, na outra. Seria suficiente para duas chávenas?
O amor não era intangível nem dispensável, guardasse a moeda aquele que pensava em atirá-la ao ar. Só não podia ser apressado. E às vezes nem chegava. Era como o fim da linha-férrea, sendo que nem todas as carreiras iam tão longe. Isso não implicava que a viagem, descendo numa estação intermédia, desiludisse. Era sempre melhor do que ficar em casa.
Alisou, com a colher, a porção de café moído com que encheu o filtro e devolveu-o à máquina, fechando a tampa. Só faltavam as chávenas e então, das duas, uma: ou explodia com o apartamento ou a sua necessidade de estimulante matinal seria satisfeita. A cabeça de Élia insinuou-se à entrada, câmara de segurança em movimento de rotação, e Ismael concluiu: a sua necessidade de estimulante matinal seria satisfeita.
Antes que Élia pudesse escapulir-se novamente para a casa de banho e tudo o que lhe fizesse companhia fosse o som abafado de um secador de cabelo, Ismael investiu sobre ela como um jogador de râguebi e estreitou-a contra si, surripiando-lhe o chão de debaixo dos chinelos e enterrando a cabeça no seu colo, inspirando fundo a agradável mistura de champô e sabonete líquido. Transportou-a no ar até lhe sentar as nádegas na ponta da mesa da cozinha e o que se lhe libertou dos lábios foi:
– Excitas-me com o teu olhar, com a tua boca e com a tua mente, quero possuir-te durante horas a fio, sem sair de dentro de ti, quero lamber-te os seios, chupar-te os mamilos, sugar-te o clítoris, explorar-te a vagina, invadir-te o ânus, beijar-te os pés, amar-te sempre.
– Quem fala assim não é gago – riu-se ela, fazendo-lhe um remoinho no cabelo com os dedos traquinas – mas não deve trabalhar de manhã. – Deu-lhe um beijo na boca, saltou do tampo e correu para a casa de banho, com um sorriso travesso ancorado nas orelhas. Como Ismael antevira, o secador de cabelo não tardou a funcionar.
Incompleto de indumentária, voltou ao quarto para terminar de equipar-se. Um dos sapatos estava, previsivelmente, debaixo da cama, pelo que teria de rastejar até ele. De semblante carregado, inclinou-se sobre um joelho e encarou a poeira que se abrigava naquele rectângulo. Ou Élia coleccionava cotão, ou a fada do lar só a visitava quinzenalmente. Esticou, anedoticamente, o braço, e perguntou-se sobre quantos meses teria de deixar crescer as unhas para esse acto ter a menor viabilidade. Retrocedeu.
Antes que o aspirador viesse encher as bochechas, não arriscava ali a camisa branca. Ponderou as opções: tentar chegar ao objectivo, apoiado apenas num joelho e no cotovelo oposto, encolhendo a barriga para que a camisa ficasse suspensa durante o processo; usar o tubo do aspirador como taco, o que o obrigaria a procurar o electrodoméstico numa casa onde não tinha, expressamente, carta branca para esquadrinhar; ou desdobrar um cabide metálico do guarda-roupa, empregando-o com a mesma finalidade que o tubo do aspirador, mas com a vantagem de ter um gancho na ponta.
Suspirando, resignadamente, pelas narinas, agarrou na trave de apoio lateral da cama e elevou-a cerca de trinta centímetros, ocasião em que empurrou toda a estrutura para o lado, até o sapato apanhar luz directa. Com um gesto rápido, pontapeou o calçado para território neutro e transportou a armação de volta à posição original.
Sentou-se no leito e olhou para o sapato. Uma fina camada de pó tornava emblemático o lado para o qual pernoitara. Abanou a cabeça, descrente. Que surpresas lhe estariam ainda reservadas? Em resposta a um comando invisível, o sapato soltou-se-lhe dos dedos, indo embater na parede e deslizando até ao soalho. Ismael interrogou-se, embrutecido por um instante, se teria, afinal, confundido o sapato com um gato preto. No instante seguinte, deu uma cambalhota para trás, agarrando com toda a força a parte de baixo do colchão. O resultado foi aterrar do lado oposto da cama, com o colchão por cima de si. Descalçou o sapato que não lhe tinha dado problemas e atirou-o contra o candeeiro do tecto. A teia de aranha que se formara na janela do quarto não lhe deixara alternativa.